“Mobilizando terror, barrando autonomia: redes de infraestrutura nas fronteiras indígenas do Chile”

Publicado originalmente em Global Media, em 22 de Outubro de 2019. Josefina Buschmann é pesquisadora e cineasta, explora as relações entre tecnologia, sociedade e meio ambiente. Seus estudos de sociologia, mídia e cinema sustentam suas pesquisas  colaborativas. Seus projetos recentes incluem o estudo do policiamento preditivo, vigilância por drones, e investigação de bancos de dados de inteligências artificiais. Ela é parte do coletivo de cinema chileno MAFI – Filmic Map of a Country.

Mobilizando o terror, contendo a autonomia: redes de infraestrutura nas fronteiras indígenas no Chile”

por Josefina Buschmann

Em Outubro de 2017, imagens de antenas de telefonia, e mensagens de texto do WhatsApp e Telegram, áudios de conversas, e vídeos de vigilância aérea surgiram nas coberturas de jornais em horário nobre no Chile, mostrando a “visão de dentro” de uma operação da inteligência policial (operación hurracán) [1] criada para vigiar e desmobilizar uma suposta organização terrorista ativa no sul do país. Vários dos oito suspeitos detidos eram importantes líderes de comunidades Mapuche. Essas comunidades se mobilizaram para retomar sua autonomia e terras [2] atualmente ocupadas por empresas agro-florestais e historicamente ocupadas durante a invasão militar do estado chileno e a colonização por colonos europeus no fim do século dezenove [3]. Após sete meses em custódia, sob acusações de associação terrorista ilícita (asociación ilícita terrorrista), os suspeitos foram liberados. A evidência – primariamente baseada em mensagens de Telegram “interceptadas” – era falsa. A operação era uma farsa [4].

Figura 01 – Screenshot do noticiário T13, de cima para baixo: vista aérea da ação policial e uma cerimônia Mapuche, antena telefônica da região, e a recriação de (falsas) mensagens no Telegram. (T13, 2017). Disponíveis em https://www.t13.cl/videos/nacional/video-detalles-operacion-huracan

Apesar da natureza falsa da operação, sua transmissão televisiva revelou o papel que as redes de infraestrutura operam na interdição da autonomia das comunidades Mapuche quando suas práticas não estão alinhadas com o limitado reconhecimento multicultural das políticas neoliberais do estado chileno [5]. Distribuídos entre a terra e o espaço, as redes de infraestrutura permitem processos de mediação [6] que são essenciais para sustentar as operações policiais tais como a captação de informação de “inteligência” por interceptação de conversas por telefone, raqueamento de perfis em mídias sociais, e detecção remota dos terrenos, e as práticas cotidianas envolvidas. Além das capacidades tecnológicas atuais dessas infraestruturas, foram as narrativas ao redor de suas capacidades técnicas, sua aura de neutralidade combinada com a opacidade desses sistemas, que deram conta de legitimar as falsas evidências e manter os líderes Mapuche encarcerados. Mais que evidência, essa Mídia de “inteligência” trabalhou como força afetiva. A polícia intencionalmente enviou para canais de notícias chilenas uma visão “de dentro” da operação assim eles poderiam pôr no ar, e criar uma atmosfera pública inflamada. As operações de notícias na mídia foram tão importantes quanto as “evidências” em si. Através de suas sequências cuidadosamente editadas, canais jornalísticos autenticaram as falsas evidências, e colocaram os Mapuche como alvos legítimos da polícia. Tecnologias de telecomunicação trabalharam como meios de fraude enquanto se posicionavam como ferramentas tecnológicas neutras, tanto na cobertura jornalística nacional quanto no sistema judicial. A farsa pôde se sustentar apenas no contexto de baixa alfabetização digital e opacidade de informações sobre o estado de vigilância. Nas palavras do advogado de defesa de um dos Mapuche acusados: “os juízes e promotores, que estavam chefiando a investigação, deram crédito extra às novas tecnologias, como se fossem ótimas formas de determinar qualquer coisa. E abusando da nossa ignorância em como essas tecnologias funcionam, eles inferiram algo e então, após interiorizarem e analisarem o relatório e o conteúdo da tecnologia, você percebe que a tecnologia não diz muito e o resto é mera especulação” [7].

Como parte da minha tese de doutorado [8], eu examinei o papel central dos processos de mediação têm tanto em produzir imaginários dos Mapuche como “criminosos” e “terroristas”, quanto em apoiar operações policiais especiais que miram, percebem e incriminam pessoas indígenas no contexto de suas mobilizações para retomada de suas terras e autonomia. Essas operações também envolvem uma intersecção com passados coloniais [9], continuidades ditatoriais [10], extrativismo neoliberal do presente [11] e práticas e discursos de segurança global [12]. Embasada em teorias de mídia e estudos de governabilidade, eu apresento o termo atmosferas operacionais (op-atmos) como uma maneira de pensar, levando em conta a composição do aparato do estado de segurança e operações na intersecção vertical (aérea, orbital, e eletromagnética), algorítmica e campos de ações afetivas [12]. Op-atmos são emaranhados de sentimentos, imaginários, e práticas discursivas; tecnologias e técnicas; economias e histórias locais e transnacionais; que formam as logísticas de percepção do estado [13] que são contingentes, parciais e calcadas em processos frágeis de trabalho intensivo, através dos quais passam a existir.

Figura 02 – Diagrama das Operações Atmosféricas. Alguns dos ícones usados foram criados por Gregor Cresner, Datacrafted, Ben Devis, Alvaro Cabrera, Nick Bluth, Abdul Karim, H Alberto Gongora, Viral Faisalovers, Ahmad, Madem Arafat Uddin, Symbolon, Oleksander Panasovskyi, Kid Mountain, glyph faisalovers, Juan Pablo Bravo, ProSymbols, e Jaime Yeo. Disponíveis em The Noun Project (diagrama pela autora, 2019)

Entre Junho de 2018 e Abril de 2019, eu conduzi entrevistas com oficiais da polícia, advogados de defesa Mapuche, ativistas locais, antropologistas, figuras políticas, e especialistas digitais; e visitei três famílias Mapuche que estavam sob vigilância, com quem nós contra-mapeamos os eventos policiais em suas áreas. Também analisei publicações na imprensa, documentos legais, processos judiciais, e investigações do congresso; e examinei artefatos técnicos e operações algorítmicas empregadas pela polícia chilena. Ao longo desse processo de pesquisa, dois objetivos específicos se sobressaíram. Primeiro, a necessidade para uma avaliação pública aberta sobre os sistemas técnicos que formam op-atmos, suas materialidades, capacidades e limitações, para que se possa desmistificar essas tecnologias e sua opacidade. Um dos métodos que empreguei foi o desenvolvimento de visualidades críticas, introduzindo fotos e diagramas com a informação coletada. O segundo propósito foi analisar como esses sistemas são postos para funcionar inseridos em culturas específicas, levando em conta as características diferenciais que elas expressam conforme são cruzadas por classe, raça, gênero e etnicidade. Eu estava particularmente interessada em ir além das práticas de percepção para compreender as práticas de pré-visualização [14] que modal o que é percebido e define quem é identificado como suspeito ou terrorista, quando e onde, como resultado, quem é posto na mira, controlado e mesmo assassinado.

Figura 03 – Diagrama dos sistemas de detecção remota aérea e forças de segurança cidadãs no Chile.

Municipalidades em amarelo, Carabineros (polícia) em verde PDI (investigadores da polícia) em azul, e Forças Militares em vermelho. Falta neste diagrama o satélite Fasat Charlie, orbitando a terra a 620km (baixa órbita terrestre), acumulando imagens multi espectrais de alta resolução. A escala não é proporcional (Diagrama da autora, 2019)

Foquei em especial na análise de sistemas aéreos dado sua presença crescente nos céus locais e seu papel chave no desenvolvimento das atmosferas operacionais. Como aviões espiões, helicópteros e drones com câmeras multi espectrais que sobrevoam sobre terras Mapuche, eles não geram apenas detecções remotas e guiam operações em solo; também produzem terror do [15] e no ar: em seus voos eles provocam medo e tensão nas populações abaixo, e as imagens aéreas gravadas são então transmitidas para dar forma ao medo público. Nesse contexto, a gravação de vigilância aérea de uma cerimônia Mapuche (Figura 01) pode se tornar a imagem de um grupo terrorista; e um vídeo noturno capturado em infravermelho mostrando a assinatura de calor anônima de corpos na floresta pode ser apresentada como Mapuches terroristas responsáveis por incêndios criminosos(Figura 04).

Figura 04 – Imagem térmica de um Flir Star Safire, câmera multi espectro instalada em um avião espião Beechcraft dos Carabineros, seguindo dos alvos (assinaturas de calor) supostamente “suspeitos” de incêndios terroristas em Araucanía, como parte da operacion huracán. Screenshot retirado de matéria sobre a força aérea dos carabineros (24 Horas, 2017)

Essa re-mediação vertical de raça [16] produz novas visualizações do “outro indígena”, que são definidas não pela cor da pele ou aparência étnica mas pela classificação do território e das populações que habitam comunidades Mapuches “radicais”. Essas fronteiras Mapuches são transformadas em espaços de exceção [17] onde se aplicam técnicas e leis especiais, uma condição que continuamente expõe seus habitantes à morte conforme seus corpos são transformados em alvos visíveis. Foi isso que aconteceu em uma tarde de Novembro quando um sargento em um helicoptero – cuja visão parcial o permitia apenas distinguir uma humano de um animal – erroneamente identifcou um suspeito de roubo e levou ao assassinato de Camilo Catrillanca, uma jovem liderança Mapuche.


Figura 5 Screenshot de uma câmera GoPro do sargento Héctor Vásquezno helicoptero que levou ao assassinato de Camilo Catrillanca.  

NOTAS

1  See T13 “Los detalles de la Operación Huracán”  https://www.t13.cl/videos/nacional/video-detalles-operacion-huracan; and 24 Horas “Así fue la Operación Huracán por dentro”  https://www.24horas.cl/nacional/asi-fue-la-operacion-huracan-por-dentro–2514600

2  Lands are particularly significant for the Mapuche, a name that literally means people (che) of or from the land (mapu), for whom “land is actively involved in the making of selves” (Di Giminiani 2016, 888), and there is a profound connection with the place of origin in the creation of selfhood. Contemporary claim for their lands is not only related to this particular ontology – this way of being in the world marked by the connection to their ancestral land -, but also to particular social structures, and a political system of governance, along with a knowing in and from the land, a  kimün  (knowledge). 

3  This historical process is known as “Pacificación de la Araucanía” (Pacification of Araucanía) or, more precisely, the military occupation of Araucanía. 

4  See Nicolás Sepúlveda and Mónica González 2018 “Operación Huracán”: testimonios y confesiones confirman que fue un montaje” Ciper Chile  https://ciperchile.cl/2018/03/13/operacion-huracan-testimonios-y-confesiones-confirman-que-todo-fue-un-montaje/

5  See Hale, Charles R., and Rosamel Millamán. “Cultural Agency and Political Struggle in the Era of the Indio Permitido.” In  Cultural Agency in the Americas, 281–304. Durham and London: Duke University Press, 2006.

6  I understand  mediation  as conceptualized by Sarah Kember and Joanna Zylinska who changed the focus on media from a set of discrete artifacts such as images and screens to an understanding of the continuous processes of mediation, where people’s daily existence is defined by “being in, and becoming with, the technological world, our emergence and ways of intra-acting with it, as well as the acts and processes of temporality stabilizing the world into media, agents, relations, and networks” (xv) (Kember, Sarah, and Joanna Zylinska.  Life after New Media. Mediation as a Vital Process. Cambridge: MIT Press, 2012). 

7  Interview conducted in Temuco, Chile. July 2018.  

8  Buschmann, Josefina. “Operational Atmospheres: Mediating policing in the fight against crime and “rural terrorism” in Chile.” Master’s thesis, Massachusetts Institute of Technology, 2019.  

https://dspace.mit.edu/handle/1721.1/122342?show=full

9  Richards, Patricia. “Of Indians and Terrorists: How the State and Local Elites Construct the Mapuche in Neoliberal Multicultural Chile.”  Journal of Latin American Studies  42, no. 01 (February 2010): 59–90. 

10  Risør, Helene, and Daniela Jacob. “‘Interculturalism as Treason’: Policing, Securitization, and Neoliberal State Formation in Southern Chile.”  Latin American and Caribbean Ethnic Studies  13, no. 3 (September 2, 2018): 237–58.

11  Richards, Patricia.  Race and the Chilean Miracle: Neoliberalism, Democracy, and Indigenous Rights. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2013. 

12  See Lisa Parks’ notion of  vertical mediation  and  cultural atmospherics; Peter Adey’s  security atmospheres; and Eyal Weizman’s  politics of verticality

13  Virilio, Paul.  War and Cinema: The Logistics of Perception. New York: Verso, 2009.

14  Browne, Simone.  Dark Matters: On the Surveillance of Blackness. Durham and London: Duke University Press, 2015.

15  Sloterdijk, Peter.  Terror from the Air. Cambridge: MIT Press, 2009.

16  Parks, Lisa. “Vertical Mediation and the U.S. Drone War in the Horn of Africa.” In  Life in the Age of Drone Warfare. Durham and London: Duke University Press, 2017.

17  Agamben, Giorgio.  Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Bloomington: Stanford University Press, 1998. 

18  Basadre, Pablo. 2019. “Muerte de Catrillanca: la versión falsa de los tripulantes del helicóptero.”  CIPER, January 17, 2019.  https://ciperchile.cl/2019/01/17/muerte-de-catrillanca-la-version-falsa-de-los-tripulantes-del-helicoptero/

19  See T13. 2018. “Gobierno Lamenta Muerte de Comunero Camilo Catrillanca y Anuncia Fiscal Exclusivo.” T13.  https://www.youtube.com/watch?time_continue=1264&v=4Mw9CZH-rqU, and Cámara de Diputados Televisión Chile. 2018.  Comisiones Unidas DD.HH. y  Seguridad Ciudadana 19/11/2018https://www.youtube.com/watch?v=j7otI-ySK5g

20    Mbembé, Achille. “Necropolitics.”  Public Culture  15, no. 1 (2003): 11–40.

21  Mansilla Quiñones, Pablo Arturo, and Miguel Melin Pehuen. “A Struggle for Territory, a Struggle Against Borders.”  NACLA Report on the Americas  51, no. 1 (March 29, 2019): 41–48.