Alemanha – O caso de Johannes Domhover, ou, Por que jamais devemos tolerar abusadores entre nós

Esse é Johannes Domhover, militante antifascista, notório predador sexual, denunciado em inúmeras ocasiões. Permaneceu circulando neste meio, até ser detido pela polícia. Agora, dentro do programa de proteção a testemunha ele é a principal testemunha (cagueta) em um caso montado pelo estado alemão na tentativa de perseguir e desmobilizar inúmeras organizações. No dia 15 de Juho, policiais conduziram buscas na casa de dois de seus antigos companheiros, além de deter ao menos uma pessoa para recolhimento de material de DNA.

No Brasil, não nos faltam casos de abusadores caminhando livres nos meios radicais, normalmente acolhidos e protegidos por outros homens, mas, como não tenho advogados: Que o caso europeu sirva para repensarmos nossas posturas, dentro das organizações e coletivos que compomos.

Nossas companheiras estão exaustas e furiosas, e com motivos de sobra. Não é de hoje que apontam que não se pode confiar em pessoas que tenham condutas graves como abusadores. Essas pessoas demonstram estar em um estado mental incompatível com o da construção social, são um risco para quem os cerca, e também para as organizações que compõem. Além do irreparável terror que causam em suas vítimas, toda violência causada por abusadores pode e eventualmente será usada pelas forças policias.

Existem suspeitas de que Domhover tenha começado a colaborar com a polícia antes mesmo de ser preso. E militantes locais tem evidências o suficiente para acreditarem que os fascistas da região tem acesso livre as centenas de páginas do processo que ele tem ajudado a montar, revelando dados sensíveis que podem comprometer a segurança de anarquistas e antifascistas de toda Alemanha.

Proteger um abusador, seja por amizade, seja pela suposta importância da pessoa para com o coletivo, é ser cúmplice da opressão patriarcal, é um convite para que outras formas mais institucionalizadas de repressão contra revolucionária venham nos assombrar.

Nas palavras das companheiras da Soli Antifa, uma organização implicada nas denúncias;

“Podemos assumir que Domhöver oferecerá todas as informações que a polícia quiser, sejam elas verdadeiras, exageradas ou completamente fictícias.

O fato de um estuprador ser também, sempre um traidor político, deve estar nítido para todos. Não é a exposição e as denúncias que fazem um estuprador trair os seus companheiros. Elas apenas trazem à tona sua falta de convicção política e seu caráter imundo.”

PELA AUTODEFESA EM TODOS OS NÍVEIS, CONTRA OS AGENTES DO PATRIARCADO

fonte: https://www.soli-antifa-ost.org

“Mobilizando terror, barrando autonomia: redes de infraestrutura nas fronteiras indígenas do Chile”

Publicado originalmente em Global Media, em 22 de Outubro de 2019. Josefina Buschmann é pesquisadora e cineasta, explora as relações entre tecnologia, sociedade e meio ambiente. Seus estudos de sociologia, mídia e cinema sustentam suas pesquisas  colaborativas. Seus projetos recentes incluem o estudo do policiamento preditivo, vigilância por drones, e investigação de bancos de dados de inteligências artificiais. Ela é parte do coletivo de cinema chileno MAFI – Filmic Map of a Country.

Mobilizando o terror, contendo a autonomia: redes de infraestrutura nas fronteiras indígenas no Chile”

por Josefina Buschmann

Em Outubro de 2017, imagens de antenas de telefonia, e mensagens de texto do WhatsApp e Telegram, áudios de conversas, e vídeos de vigilância aérea surgiram nas coberturas de jornais em horário nobre no Chile, mostrando a “visão de dentro” de uma operação da inteligência policial (operación hurracán) [1] criada para vigiar e desmobilizar uma suposta organização terrorista ativa no sul do país. Vários dos oito suspeitos detidos eram importantes líderes de comunidades Mapuche. Essas comunidades se mobilizaram para retomar sua autonomia e terras [2] atualmente ocupadas por empresas agro-florestais e historicamente ocupadas durante a invasão militar do estado chileno e a colonização por colonos europeus no fim do século dezenove [3]. Após sete meses em custódia, sob acusações de associação terrorista ilícita (asociación ilícita terrorrista), os suspeitos foram liberados. A evidência – primariamente baseada em mensagens de Telegram “interceptadas” – era falsa. A operação era uma farsa [4].

Figura 01 – Screenshot do noticiário T13, de cima para baixo: vista aérea da ação policial e uma cerimônia Mapuche, antena telefônica da região, e a recriação de (falsas) mensagens no Telegram. (T13, 2017). Disponíveis em https://www.t13.cl/videos/nacional/video-detalles-operacion-huracan

Apesar da natureza falsa da operação, sua transmissão televisiva revelou o papel que as redes de infraestrutura operam na interdição da autonomia das comunidades Mapuche quando suas práticas não estão alinhadas com o limitado reconhecimento multicultural das políticas neoliberais do estado chileno [5]. Distribuídos entre a terra e o espaço, as redes de infraestrutura permitem processos de mediação [6] que são essenciais para sustentar as operações policiais tais como a captação de informação de “inteligência” por interceptação de conversas por telefone, raqueamento de perfis em mídias sociais, e detecção remota dos terrenos, e as práticas cotidianas envolvidas. Além das capacidades tecnológicas atuais dessas infraestruturas, foram as narrativas ao redor de suas capacidades técnicas, sua aura de neutralidade combinada com a opacidade desses sistemas, que deram conta de legitimar as falsas evidências e manter os líderes Mapuche encarcerados. Mais que evidência, essa Mídia de “inteligência” trabalhou como força afetiva. A polícia intencionalmente enviou para canais de notícias chilenas uma visão “de dentro” da operação assim eles poderiam pôr no ar, e criar uma atmosfera pública inflamada. As operações de notícias na mídia foram tão importantes quanto as “evidências” em si. Através de suas sequências cuidadosamente editadas, canais jornalísticos autenticaram as falsas evidências, e colocaram os Mapuche como alvos legítimos da polícia. Tecnologias de telecomunicação trabalharam como meios de fraude enquanto se posicionavam como ferramentas tecnológicas neutras, tanto na cobertura jornalística nacional quanto no sistema judicial. A farsa pôde se sustentar apenas no contexto de baixa alfabetização digital e opacidade de informações sobre o estado de vigilância. Nas palavras do advogado de defesa de um dos Mapuche acusados: “os juízes e promotores, que estavam chefiando a investigação, deram crédito extra às novas tecnologias, como se fossem ótimas formas de determinar qualquer coisa. E abusando da nossa ignorância em como essas tecnologias funcionam, eles inferiram algo e então, após interiorizarem e analisarem o relatório e o conteúdo da tecnologia, você percebe que a tecnologia não diz muito e o resto é mera especulação” [7].

Como parte da minha tese de doutorado [8], eu examinei o papel central dos processos de mediação têm tanto em produzir imaginários dos Mapuche como “criminosos” e “terroristas”, quanto em apoiar operações policiais especiais que miram, percebem e incriminam pessoas indígenas no contexto de suas mobilizações para retomada de suas terras e autonomia. Essas operações também envolvem uma intersecção com passados coloniais [9], continuidades ditatoriais [10], extrativismo neoliberal do presente [11] e práticas e discursos de segurança global [12]. Embasada em teorias de mídia e estudos de governabilidade, eu apresento o termo atmosferas operacionais (op-atmos) como uma maneira de pensar, levando em conta a composição do aparato do estado de segurança e operações na intersecção vertical (aérea, orbital, e eletromagnética), algorítmica e campos de ações afetivas [12]. Op-atmos são emaranhados de sentimentos, imaginários, e práticas discursivas; tecnologias e técnicas; economias e histórias locais e transnacionais; que formam as logísticas de percepção do estado [13] que são contingentes, parciais e calcadas em processos frágeis de trabalho intensivo, através dos quais passam a existir.

Figura 02 – Diagrama das Operações Atmosféricas. Alguns dos ícones usados foram criados por Gregor Cresner, Datacrafted, Ben Devis, Alvaro Cabrera, Nick Bluth, Abdul Karim, H Alberto Gongora, Viral Faisalovers, Ahmad, Madem Arafat Uddin, Symbolon, Oleksander Panasovskyi, Kid Mountain, glyph faisalovers, Juan Pablo Bravo, ProSymbols, e Jaime Yeo. Disponíveis em The Noun Project (diagrama pela autora, 2019)

Entre Junho de 2018 e Abril de 2019, eu conduzi entrevistas com oficiais da polícia, advogados de defesa Mapuche, ativistas locais, antropologistas, figuras políticas, e especialistas digitais; e visitei três famílias Mapuche que estavam sob vigilância, com quem nós contra-mapeamos os eventos policiais em suas áreas. Também analisei publicações na imprensa, documentos legais, processos judiciais, e investigações do congresso; e examinei artefatos técnicos e operações algorítmicas empregadas pela polícia chilena. Ao longo desse processo de pesquisa, dois objetivos específicos se sobressaíram. Primeiro, a necessidade para uma avaliação pública aberta sobre os sistemas técnicos que formam op-atmos, suas materialidades, capacidades e limitações, para que se possa desmistificar essas tecnologias e sua opacidade. Um dos métodos que empreguei foi o desenvolvimento de visualidades críticas, introduzindo fotos e diagramas com a informação coletada. O segundo propósito foi analisar como esses sistemas são postos para funcionar inseridos em culturas específicas, levando em conta as características diferenciais que elas expressam conforme são cruzadas por classe, raça, gênero e etnicidade. Eu estava particularmente interessada em ir além das práticas de percepção para compreender as práticas de pré-visualização [14] que modal o que é percebido e define quem é identificado como suspeito ou terrorista, quando e onde, como resultado, quem é posto na mira, controlado e mesmo assassinado.

Figura 03 – Diagrama dos sistemas de detecção remota aérea e forças de segurança cidadãs no Chile.

Municipalidades em amarelo, Carabineros (polícia) em verde PDI (investigadores da polícia) em azul, e Forças Militares em vermelho. Falta neste diagrama o satélite Fasat Charlie, orbitando a terra a 620km (baixa órbita terrestre), acumulando imagens multi espectrais de alta resolução. A escala não é proporcional (Diagrama da autora, 2019)

Foquei em especial na análise de sistemas aéreos dado sua presença crescente nos céus locais e seu papel chave no desenvolvimento das atmosferas operacionais. Como aviões espiões, helicópteros e drones com câmeras multi espectrais que sobrevoam sobre terras Mapuche, eles não geram apenas detecções remotas e guiam operações em solo; também produzem terror do [15] e no ar: em seus voos eles provocam medo e tensão nas populações abaixo, e as imagens aéreas gravadas são então transmitidas para dar forma ao medo público. Nesse contexto, a gravação de vigilância aérea de uma cerimônia Mapuche (Figura 01) pode se tornar a imagem de um grupo terrorista; e um vídeo noturno capturado em infravermelho mostrando a assinatura de calor anônima de corpos na floresta pode ser apresentada como Mapuches terroristas responsáveis por incêndios criminosos(Figura 04).

Figura 04 – Imagem térmica de um Flir Star Safire, câmera multi espectro instalada em um avião espião Beechcraft dos Carabineros, seguindo dos alvos (assinaturas de calor) supostamente “suspeitos” de incêndios terroristas em Araucanía, como parte da operacion huracán. Screenshot retirado de matéria sobre a força aérea dos carabineros (24 Horas, 2017)

Essa re-mediação vertical de raça [16] produz novas visualizações do “outro indígena”, que são definidas não pela cor da pele ou aparência étnica mas pela classificação do território e das populações que habitam comunidades Mapuches “radicais”. Essas fronteiras Mapuches são transformadas em espaços de exceção [17] onde se aplicam técnicas e leis especiais, uma condição que continuamente expõe seus habitantes à morte conforme seus corpos são transformados em alvos visíveis. Foi isso que aconteceu em uma tarde de Novembro quando um sargento em um helicoptero – cuja visão parcial o permitia apenas distinguir uma humano de um animal – erroneamente identifcou um suspeito de roubo e levou ao assassinato de Camilo Catrillanca, uma jovem liderança Mapuche.


Figura 5 Screenshot de uma câmera GoPro do sargento Héctor Vásquezno helicoptero que levou ao assassinato de Camilo Catrillanca.  

NOTAS

1  See T13 “Los detalles de la Operación Huracán”  https://www.t13.cl/videos/nacional/video-detalles-operacion-huracan; and 24 Horas “Así fue la Operación Huracán por dentro”  https://www.24horas.cl/nacional/asi-fue-la-operacion-huracan-por-dentro–2514600

2  Lands are particularly significant for the Mapuche, a name that literally means people (che) of or from the land (mapu), for whom “land is actively involved in the making of selves” (Di Giminiani 2016, 888), and there is a profound connection with the place of origin in the creation of selfhood. Contemporary claim for their lands is not only related to this particular ontology – this way of being in the world marked by the connection to their ancestral land -, but also to particular social structures, and a political system of governance, along with a knowing in and from the land, a  kimün  (knowledge). 

3  This historical process is known as “Pacificación de la Araucanía” (Pacification of Araucanía) or, more precisely, the military occupation of Araucanía. 

4  See Nicolás Sepúlveda and Mónica González 2018 “Operación Huracán”: testimonios y confesiones confirman que fue un montaje” Ciper Chile  https://ciperchile.cl/2018/03/13/operacion-huracan-testimonios-y-confesiones-confirman-que-todo-fue-un-montaje/

5  See Hale, Charles R., and Rosamel Millamán. “Cultural Agency and Political Struggle in the Era of the Indio Permitido.” In  Cultural Agency in the Americas, 281–304. Durham and London: Duke University Press, 2006.

6  I understand  mediation  as conceptualized by Sarah Kember and Joanna Zylinska who changed the focus on media from a set of discrete artifacts such as images and screens to an understanding of the continuous processes of mediation, where people’s daily existence is defined by “being in, and becoming with, the technological world, our emergence and ways of intra-acting with it, as well as the acts and processes of temporality stabilizing the world into media, agents, relations, and networks” (xv) (Kember, Sarah, and Joanna Zylinska.  Life after New Media. Mediation as a Vital Process. Cambridge: MIT Press, 2012). 

7  Interview conducted in Temuco, Chile. July 2018.  

8  Buschmann, Josefina. “Operational Atmospheres: Mediating policing in the fight against crime and “rural terrorism” in Chile.” Master’s thesis, Massachusetts Institute of Technology, 2019.  

https://dspace.mit.edu/handle/1721.1/122342?show=full

9  Richards, Patricia. “Of Indians and Terrorists: How the State and Local Elites Construct the Mapuche in Neoliberal Multicultural Chile.”  Journal of Latin American Studies  42, no. 01 (February 2010): 59–90. 

10  Risør, Helene, and Daniela Jacob. “‘Interculturalism as Treason’: Policing, Securitization, and Neoliberal State Formation in Southern Chile.”  Latin American and Caribbean Ethnic Studies  13, no. 3 (September 2, 2018): 237–58.

11  Richards, Patricia.  Race and the Chilean Miracle: Neoliberalism, Democracy, and Indigenous Rights. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2013. 

12  See Lisa Parks’ notion of  vertical mediation  and  cultural atmospherics; Peter Adey’s  security atmospheres; and Eyal Weizman’s  politics of verticality

13  Virilio, Paul.  War and Cinema: The Logistics of Perception. New York: Verso, 2009.

14  Browne, Simone.  Dark Matters: On the Surveillance of Blackness. Durham and London: Duke University Press, 2015.

15  Sloterdijk, Peter.  Terror from the Air. Cambridge: MIT Press, 2009.

16  Parks, Lisa. “Vertical Mediation and the U.S. Drone War in the Horn of Africa.” In  Life in the Age of Drone Warfare. Durham and London: Duke University Press, 2017.

17  Agamben, Giorgio.  Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Bloomington: Stanford University Press, 1998. 

18  Basadre, Pablo. 2019. “Muerte de Catrillanca: la versión falsa de los tripulantes del helicóptero.”  CIPER, January 17, 2019.  https://ciperchile.cl/2019/01/17/muerte-de-catrillanca-la-version-falsa-de-los-tripulantes-del-helicoptero/

19  See T13. 2018. “Gobierno Lamenta Muerte de Comunero Camilo Catrillanca y Anuncia Fiscal Exclusivo.” T13.  https://www.youtube.com/watch?time_continue=1264&v=4Mw9CZH-rqU, and Cámara de Diputados Televisión Chile. 2018.  Comisiones Unidas DD.HH. y  Seguridad Ciudadana 19/11/2018https://www.youtube.com/watch?v=j7otI-ySK5g

20    Mbembé, Achille. “Necropolitics.”  Public Culture  15, no. 1 (2003): 11–40.

21  Mansilla Quiñones, Pablo Arturo, and Miguel Melin Pehuen. “A Struggle for Territory, a Struggle Against Borders.”  NACLA Report on the Americas  51, no. 1 (March 29, 2019): 41–48. 

 

 

Notas sobre Treinamento em Autodefesa Antifascista

Apontamentos em Treinamento em Autodefesa Antifascista

10 Lições da Experiência Antifascista Russa

por Cloudbuster, 14 de Novembro, 2017 [publicado originalmente em CrimeThinc

 

Durante a presidência de Trump testemunhamos uma explosão em atividades de organização fascista e resistência antifascista na América do Norte. Estratégias e táticas originalmente desenvolvidas no contexto europeu espalharam-se pelos EUA. Enquanto isso, na Rússia, tanto a violência nazi quanto atividades antifascistas diminuíram a uma fração do que eram no ápice dos conflitos, entre 2002-2011. No texto que segue, um participante do movimento antifascista compartilha suas experiências sobre como se preparar para confrontos antifascistas. 

Ao publicarmos essa perspectiva, desejamos facilitar o diálogo entre os que lutam contra o fascismo, sob diferentes circunstâncias ao redor do mundo. Acreditamos que é crucial para antifascistas aprenderam através das histórias e experiências de seus pares. Se o modelo de ação antifascista russo chegou aos seus limites por conta de fatores internos, como descrito a baixo, nós devemos tomar cuidado para não reproduzir estes elementos em nossa própria organização. Do mesmo modo, nós encorajamos os leitores a ter em mente as diferenças legais, políticas e sociais entre o contextos russo e estadonidense; a menos que a outra opção fosse ainda pior, você não conseguirá ajudar ninguém caso termine sendo preso acusado de posse de armas, . No longo prazo, o fascismo não será vencido no braço ou por coragem individual, mas através da construção de uma oposição coletiva, movimentos participativos que acessem os problemas sociais e econômicos sobre os quais os fascistas capitalizam para recrutar para suas organizações.

0. Introdução do Autor

Infelizmente, esse texto não servirá para entramos nas minúcias da história do antifascismo russo. Esse texto ainda há de ser escrito.

Existem vários motivos pelos quais tanto o terrorismo fascista e a organização antifascista têm diminuído drasticamente na Rússia durante a última década. Primeiramente, a sociedade russa está menos disfuncional. Durante a crise econômica de 1990, comunidades inteiras foram devastadas pelo crime e as drogas; pessoas nascidas em 1980 estiveram entre as mais afetadas. Quando essa geração atingiu seus vinte anos, na década seguinte, estavam propensos à violência e comportamentos caóticos. Quase todos os terroristas nazis nasceram em 1980. Desde então, a maioria dos que continuam vivos e em liberdade, de alguma maneira, têm levado vidas mais estáveis.

A polícia também tem levado fascistas e antifascistas mais a sério. Uma década atrás, era possível subornar policiais locais para sair de alguma confusão; algumas vezes você podia subornar até agentes da FSB (a sucessora da KGB). Atualmente, policiais locais contatam o Centro de Resposta Contra o Extremismo (E-Center) ou a FSB, e eles já não aceitam propina. O governo também tem reprimido fortemente a subcultura dos hoolingans no futebol, que costumava ser a maior subcultura jovem da Rússia.

Um terceiro motivo é a mudança de estratégia dos fascistas. Fascistas russos tem oscilado entre organizar amplos movimentos de massa e terrorismo clandestino. Em 1990, o partido de Barkashov, o Unidade nacional Russa, agitou milhares de apoiadores; no fim dos anos 2000, não sobrava nada dessa influência e os fascistas estavam se agrupando em células terroristas clandestinas. A mais proeminente dessas foi a Organização Combativa dos Russos Nacionalistas (BORN), que se especializava em assassinatos de figuras importantes, incluindo o antifascistas Ivan Khutorskoy, Fyodor Filatov, Ilya Dzhaparidze, Stanislav Markelov e Anastasia Baburova.

Murais em homenagem aos antifascistas mortos por fascistas

Todos os membros conhecidos da BORN estão mortos ou presos desde 2013; Durante o ciclo de protestos contra a fraude eleitoral de 2011-2012 e a ascensão de Alexei Navalny através de uma plataforma anti corrupção e anti imigração, fascistas redescobriram sua esperança perdida de construir um movimento de massas e se juntaram aos liberais e esquerdistas em protestos massivos – não sem ocasionais brigas entre fascistas e antifascistas. Eventualmente surgiram novos grupos terroristas, como o grupo ao redor de Pavel Vojtov, que assassinou ao menos 15 moradores de rua na área de Moscou entre 2014 e 2015. Mas isso não é nada comparado a situação na década passada.

A última grande investida nazi contra antifascistas foi no verão de 2010, quando um grupo de nazis tentou atacar o show da banda Moscow Death Brigade, e acabou sendo dispersado por disparos de aviso de uma espingarda. A corrida armamentista chegou a sua conclusão lógica; tanto antifascistas quanto fascistas perderam seu interesse em atacar eventos de seus oponentes.

Após o colapso do movimento contra a fraude eleitoral, o movimento fascista estava em crise, da mesma forma que o resto da oposição. A guerra no Donbass (uma região no leste da Ucrânia, devastada por uma insurgência financiada pela Rússia) foi outro golpe devastador, que fez os nazis se desmobilizarem discutindo sobre que lado do conflito apoiar. Eventualmente, tanto nazis e antifascistas acabaram lutando nos dois lados do front. Mesmo anarquistas falharam em chegar a um consenso sobre a guerra no Donbass.

De certo modo, antifascistas russos saíram vitoriosos, já que o movimento sempre esteve organizado em proteger shows, não combater o racismo em toda sociedade russa. Já que os nazis não aparecem mais nos shows, sobrou pouco do antifascismo organizado.

Por conta de todos esses fatores, a violência racista diminuiu drasticamente na Rússia. De acordo com o centro de estatísticas SOVA, houveram 692 incidentes em 2007 e 93 em 2016 – uma diminuição de 86%. Os números verdadeiros podem ser ainda maiores, já que a velocidade da denúncia dos crimes acelera, quando os números diminuem.

Os motivos da ascensão e queda do fascismo e do antifascismo na Rússia são bastante localizados; provavelmente não existem muitas lições universais para serem aprendidas. De todo modo, nós podemos oferecer alguns apontamentos sobre a prática nas ruas.

As sugestões à seguir foram adquiridas através da experiência de todos esses anos na Rússia. O que apresentamos aqui é senso comum básico, mas julgando pelo que tenho lido na internet, algumas pessoas ainda se beneficiariam dessas sugestões.

Perceba que nesse texto, autodefesa também se refere a ataques preemptivos, já que não podemos esperar que a trégua com os fascistas durem para sempre.

1. Quando se trata de confronto físico, existe uma rígida hierarquia de ferramentas

Um porrete quase sempre vence mãos nuas. Uma lâmina quase sempre vence um porrete. Uma arma de fogo sempre vence uma lâmina.

Essa hierarquia de ferramentas é muito mais importante que qualquer diferença em tamanho e força: ela também acaba com a maioria das diferenças de habilidade. Com uma lâmina, você pode facilmente vencer um inimigo desarmado, mesmo que ele tenha duas vezes o seu tamanho. Leve isso em consideração se você for pequeno e fraco.

E saiba que…

2. Não existe uma prática de autodefesa universal

A prática correta de autodefesa depende completamente do contexto legal e cultural.

Por exemplo:

  • No Centro e Leste Europeu, conflitos geralmente envolvem mãos nuas, as vezes alguma arma de contusão. Apesar de eventualmente acontecer, na maioria desses países existe uma aversão cultural ao uso de facas como arma. Armas de fogo quase nunca são usadas, já que a posse é pesadamente regulada.
  • Na Grécia, mesmo a posse de facas pode levar a uma sentença pesada. Por isso, confrontos geralmente envolvem armas de contusão.
  • Na Finlândia, não é incomum que as pessoas andem com facas, e você precisa levar em conta a possibilidade de seu oponente estar carregando uma. Armas de fogo também são mais acessíveis lá, que em outras partes da Europa.
  • Nos EUA, as leis para armas de fogo são mais abertas. É preciso agir levando em consideração a possibilidade que seu oponente pode estar armado.
  • Na Rússia, a a questão cultural é fluida. De acordo com as tradições, conflitos devem ser acertados apenas com os punhos, e a legislação para armas de fogo é bastante restritiva. Mas desde a escalada no conflito de 2002 e 2011, trauma guns e facas substituíram os punhos. Espingardas criaram um equilíbrio através do medo e os confrontos cessaram quase totalmente. Por conta da pressão legal e cultural, esses ciclos se desenrolaram através de muitos anos.

A Antifa nasceu na Alemanha e se espalhou pelo Leste Europeu e Europa Central, mas a prática de lutar de mãos limpas não é aplicável em locais onde a estrutura cultural e legal não mantenha os confrontos dentro desses termos. Não existe motivo para treinar técnicas de autodefesa desarmada se seus oponente provavelmente carrega uma arma de contusão. Não existe motivo para treinar autodefesa com armas de contusão se seu oponente provavelmente carrega uma faca. Se é provável que seu oponente carregue uma arma de fogo, não existe motivo pra treinar autodefesa com facas.

Além da estrutura legal e cultural, os cenários também importam. Li um artigo sobre antifascistas organizando uma academia de power lifting nos EUA, para se prepararem para conflitos contra racistas e sexistas nas ruas e bares. Levantamento de peso é de bem pouco útil se seu objetivo for parar uma manifestação fascista. Se o cenário for sobre confrontar um racista/sexista/homofóbico aleatório na rua ou agir como segurança em um evento, aparentar ser grande talvez resolva o problema sem precisar de violência.

Isso nos leva ao nosso próximo ponto…

3. Entenda Suas Prioridades

Há menos que você seja jovem e tenha planos de se tornar um profissional na autodefesa, considere bem suas prioridades. Você não pode se preparar para todos os cenários; escolha apenas alguns. Mesmo que você não tenha que cuidar dos estudos, emprego ou da sua família agora, é bem provável que você tenha que cuidar dessas coisas nos próximos 10 anos, o tempo que levaria para você se tornar um expert universal.

Você tem uma escolha a ser feita. Se planeja encarar oponentes armados, treine autodefesa de mãos limpas. Se espera encontrar oponentes armados, descubra como sobreviver nesse cenário. Se sua expectativa é de enfrentar assediadores aleatórios ou babacas bêbados em eventos, levantamento de peso deve ajudar. É bem provável que você não vai conseguir se preparar para todos esses cenários. Concentre-se no que tem mais chance de te manter vivo e saudável.

Portanto…

4. Não treine MMA

Caso não tenha planos de trabalhar como segurança, não se concentre em lutas que focam em apenas um oponente. Isso vale pra qualquer luta que leve o oponente ao solo, incluindo wrestling e Jiu-Jitsu Brasileiro.

Se precisar lutar com vários oponentes e for ao solo com um deles, alguém vai chutar sua cabeça ou te esfaquear pelas costas. Se quer continuar vivo, você vai evitar ao máximo ir ao solo, em qualquer situação de conflito. Você deve aprender uma ou outra coisa sobre imobilizações, mas passar anos estudando a complexidade dessa arte não faz sentido se seu objetivo é sobreviver nas ruas.

Sempre me sinto triste quando leio sobre antifascistas treinando MMA. Obviamente, é uma forma de arte muito bonita. Mesmo assim, ela tem pouca relação com o tipo de autodefesa que você pode precisar em confrontos políticos. Sim, torneios antifascistas de MMA tem sido organizados nos territórios da antiga União Soviética desde 2009, mas isso acontece por uma questão cultural que não reflete a realidade das ruas. Puxar uma faca é considerado um ato repreensível; é por isso que as pessoas seguem treinando MMA mesmo quando todo mundo anda com facas ou uma trauma gun [1].

Evite qualquer técnica centenária, chinesa ou japonesa exceto se você tem como objetivo estuda-la pro resto a vida. Essas artes foram desenvolvidas para os propósitos de uma casta especializada de tempos feudais; elas exigem anos de treino dedicado para serem dominadas e envolvem armas nada práticas e ultrapassadas. Se você nasceu na aristocracia, pode se dar ao luxo de se tornar um samurai. Em outros cenários, é pouco provável.

Só você sabe o que fazer da sua vida. Se especializar em manejar o Kwan Dao ou uma Katana pode ser tão fascinante quanto montar miniaturas de estações de trem. Mas nas ruas, as três opções são igualmente inúteis, exceto que você carregue sua Gwan Dao ou Katana pra todo lugar que for.

Se você tem um emprego ou outra tarefa que exige tempo, se não treina artes marciais desde a infância, não tem um talento nato, concentre-se em aprender o essencial e as habilidades mais básicas. Se planeja enfrentar oponentes em combate desarmado, a primeira coisa é aprender como dar socos e chutes. Muay Thai é uma boa opção. Se você vive em uma área em que é mais propenso a se ver numa situação envolvendo armas de contusão e facas, eu recomendo artes marciais filipinas como Kali e Escrima – e nada mais. Se você vive em uma área onde todos carregam uma arma, arranje uma e aprenda como atirar.

E também…

Um vídeo mostrando o primeiro torneio de MMA, No Surrender, em Moscou, em Outubro de 2009.  O chefe de arbitragem, Ivan Khutorskoy, foi assassinado pela BORN um mês depois.

 

5. Esteja preparado para usar sua arma

Mesmo em países onde as normas culturais ou leis contra armas são restritivas, elas permanecem sendo usadas. Paus e pedras estão em todo canto; e se seu oponente vai procurar por eles, se estiver levando a pior. Não existe país em que você deve se concentrar apenas em combate desarmado.

Mesmo que você se prepare apenas para combate desarmado, pense como proteger seus punhos. Você não vai andar pra todo lado com luvas de boxe – e nem deve usar elas em uma briga séria. Mas se você quebrar o pulso no primeiro soco, você tá ferrado. Pense nisso. Sempre esteja preparado pra proteger seus punhos.

E quando treina com armas…

6. Não invista muito tempo estudando técnicas de desarme

O mais provável é que você nunca tenha a oportunidade de usa-las. Tentar desarmar uma pessoa armada com qualquer tipo de arma é sempre extremamente perigoso. Você deveria tentar apenas se seu oponente for estiver nitidamente bêbado ou for inexperiente e não haja nenhum outro oponente ao redor. Exceto por esses cenários, sua melhor opção é usar sua própria arma. Se você não tem uma arma e não existe uma rota de fuga… Você provavelmente tá ferrado.

Por isso, além de treinar…

7. Esteja preparado para usar o que aprendeu

Não faz sentido treinar artes marciais que usam armas se você não anda com sua arma. Treinar sua mira e não andar com a sua arma, torna ela inútil. Uma vez que tenha aprendido a técnica, você deveria portar ela sempre que você suspeitar que pode entrar em um confronto – e as vezes também em lugares onde não suspeita. Se por algum motivo isso não for possível, esteja preparado para entrar em um conflito sem sua arma.

8. E sobre sair correndo ?

Gurus da autodefesa dizem que : “Primeiramente, você deveria tentar escapar”. Geralmente é um bom conselho – mas nem sempre. Primeiro, é sempre mais fácil pegar alguém do que correr, então, só faz sentido se você acredita que é mais rápido e conhece bem a rota de fuga. Segundo, pode ser que você não seja o único com a vida e a integridade física em jogo. E se você conseguir escapar, mas isso significar deixar seu camarada para enfrentar sozinho seus adversários ?

Certamente é uma boa ideia se manter em boa forma e treinar cardio. Quase todo confronto de rua exige fôlego e ao menos um pouco de corrida. Mas você deveria estar preparado para situações em que correr não é uma opção.

Mesmo gurus podem dar maus conselhos, por isso…

9. Sempre treine com profissionais

Ou ao menos estude com instrutores que tenham bastante experiência. É divertido passar um tempo praticando com amigos de forma espontânea, mas para de fato aprender alguma coisa e desenvolver suas habilidades é preciso fazer parte de um grupo comprometido.

Sim, muitos treinadores e pessoas em academias são uns cuzões. Tanto instrutores quanto alunos podem ser hostis, metidos, sexistas, ou insensíveis de algum modo.Ainda assim, as pessoas que você vai encarar em brigas de rua também não serão nada simpáticas.

Não estou dizendo que você deveria pagar para participar de uma aula que seja insuportável. Se as outras pessoas são tão babacas que você não possa se concentrar, então não vale o dinheiro que você gasta. Mas qualquer cidade grande tem um bom número de opções; Se um instrutor ou academia não te agrada, vá atrás de outra. Se não houver outra opção, treinar sozinho ou com amigos.

Por mais que seja melhor treinar com profissionais, um instrutor profissional provavelmente não é a melhor fonte para buscar conselhos. Se você perguntar para o seu treinador como e quanto você deveria treinar, ela ou ele provavelmente vai te dizer que você deveria treinar seis dias por semana, e no sétimo ir competir. Talvez você só queira treinar para ficar seguro nas ruas, ou ao menos sair vivo delas. Nem todo antifascista precisa ser um instrutor ou lutador profissional. Se a luta que você escolheu só vai vir a ser útil depois de você praticar três vezes por semana durante cinco anos, reveja sua escolha. Uma das escolhas mais idiotas que fiz na vida foi treinar vários estilos antiquíssimos de kung-fu por anos. Nunca tive tempo ou habilidade o suficiente para tirar nada de útil.

E por último…

10. Sempre pratique sparring

Apenas sparring pode te preparar para confrontos de verdade. Você pode praticar com regras e cenários diferentes, como uma pessoa contra várias, ou dividir várias pessoas em dois grupos diferentes. Treine como sacar rapidamente sua arma. Faça isso em todo treino, mesmo que seja um iniciante. Se seu instrutor não entende a importância do sparring, mude de instrutor.

Não pegue muito pesado, você não quer ficar com nenhuma sequela permanente. Mas também não pegue muito leve.

— Cloudbuster

Eu gostaria de agradecer a Jew Bear, xAx, e aos agentes da Crimethinc. pelos valiosos comentários.

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Um exemplo de briga ao estilo hooligan. Em 2010, Arsenal Kiev, conhecidos por seus torcedores antifascistas, jogou contra o Karpaty Lviv, que é conhecida por sua torcida fascista. Muitos antifascistas da Rússia saíram em apoio ao Arsenal. Os torcefores do Arsenal foram capazes de defender seu território, mesmo tendo seus númerdos superados por mais de 2 pra 1.

 

[1] “Trauma guns” são um tipo de arma não letal criado e popularizado na Rússia, que atualmente também é parte dos arsenais de policias nos EUA