Notas sobre Treinamento em Autodefesa Antifascista

Apontamentos em Treinamento em Autodefesa Antifascista

10 Lições da Experiência Antifascista Russa

por Cloudbuster, 14 de Novembro, 2017 [publicado originalmente em CrimeThinc

 

Durante a presidência de Trump testemunhamos uma explosão em atividades de organização fascista e resistência antifascista na América do Norte. Estratégias e táticas originalmente desenvolvidas no contexto europeu espalharam-se pelos EUA. Enquanto isso, na Rússia, tanto a violência nazi quanto atividades antifascistas diminuíram a uma fração do que eram no ápice dos conflitos, entre 2002-2011. No texto que segue, um participante do movimento antifascista compartilha suas experiências sobre como se preparar para confrontos antifascistas. 

Ao publicarmos essa perspectiva, desejamos facilitar o diálogo entre os que lutam contra o fascismo, sob diferentes circunstâncias ao redor do mundo. Acreditamos que é crucial para antifascistas aprenderam através das histórias e experiências de seus pares. Se o modelo de ação antifascista russo chegou aos seus limites por conta de fatores internos, como descrito a baixo, nós devemos tomar cuidado para não reproduzir estes elementos em nossa própria organização. Do mesmo modo, nós encorajamos os leitores a ter em mente as diferenças legais, políticas e sociais entre o contextos russo e estadonidense; a menos que a outra opção fosse ainda pior, você não conseguirá ajudar ninguém caso termine sendo preso acusado de posse de armas, . No longo prazo, o fascismo não será vencido no braço ou por coragem individual, mas através da construção de uma oposição coletiva, movimentos participativos que acessem os problemas sociais e econômicos sobre os quais os fascistas capitalizam para recrutar para suas organizações.

0. Introdução do Autor

Infelizmente, esse texto não servirá para entramos nas minúcias da história do antifascismo russo. Esse texto ainda há de ser escrito.

Existem vários motivos pelos quais tanto o terrorismo fascista e a organização antifascista têm diminuído drasticamente na Rússia durante a última década. Primeiramente, a sociedade russa está menos disfuncional. Durante a crise econômica de 1990, comunidades inteiras foram devastadas pelo crime e as drogas; pessoas nascidas em 1980 estiveram entre as mais afetadas. Quando essa geração atingiu seus vinte anos, na década seguinte, estavam propensos à violência e comportamentos caóticos. Quase todos os terroristas nazis nasceram em 1980. Desde então, a maioria dos que continuam vivos e em liberdade, de alguma maneira, têm levado vidas mais estáveis.

A polícia também tem levado fascistas e antifascistas mais a sério. Uma década atrás, era possível subornar policiais locais para sair de alguma confusão; algumas vezes você podia subornar até agentes da FSB (a sucessora da KGB). Atualmente, policiais locais contatam o Centro de Resposta Contra o Extremismo (E-Center) ou a FSB, e eles já não aceitam propina. O governo também tem reprimido fortemente a subcultura dos hoolingans no futebol, que costumava ser a maior subcultura jovem da Rússia.

Um terceiro motivo é a mudança de estratégia dos fascistas. Fascistas russos tem oscilado entre organizar amplos movimentos de massa e terrorismo clandestino. Em 1990, o partido de Barkashov, o Unidade nacional Russa, agitou milhares de apoiadores; no fim dos anos 2000, não sobrava nada dessa influência e os fascistas estavam se agrupando em células terroristas clandestinas. A mais proeminente dessas foi a Organização Combativa dos Russos Nacionalistas (BORN), que se especializava em assassinatos de figuras importantes, incluindo o antifascistas Ivan Khutorskoy, Fyodor Filatov, Ilya Dzhaparidze, Stanislav Markelov e Anastasia Baburova.

Murais em homenagem aos antifascistas mortos por fascistas

Todos os membros conhecidos da BORN estão mortos ou presos desde 2013; Durante o ciclo de protestos contra a fraude eleitoral de 2011-2012 e a ascensão de Alexei Navalny através de uma plataforma anti corrupção e anti imigração, fascistas redescobriram sua esperança perdida de construir um movimento de massas e se juntaram aos liberais e esquerdistas em protestos massivos – não sem ocasionais brigas entre fascistas e antifascistas. Eventualmente surgiram novos grupos terroristas, como o grupo ao redor de Pavel Vojtov, que assassinou ao menos 15 moradores de rua na área de Moscou entre 2014 e 2015. Mas isso não é nada comparado a situação na década passada.

A última grande investida nazi contra antifascistas foi no verão de 2010, quando um grupo de nazis tentou atacar o show da banda Moscow Death Brigade, e acabou sendo dispersado por disparos de aviso de uma espingarda. A corrida armamentista chegou a sua conclusão lógica; tanto antifascistas quanto fascistas perderam seu interesse em atacar eventos de seus oponentes.

Após o colapso do movimento contra a fraude eleitoral, o movimento fascista estava em crise, da mesma forma que o resto da oposição. A guerra no Donbass (uma região no leste da Ucrânia, devastada por uma insurgência financiada pela Rússia) foi outro golpe devastador, que fez os nazis se desmobilizarem discutindo sobre que lado do conflito apoiar. Eventualmente, tanto nazis e antifascistas acabaram lutando nos dois lados do front. Mesmo anarquistas falharam em chegar a um consenso sobre a guerra no Donbass.

De certo modo, antifascistas russos saíram vitoriosos, já que o movimento sempre esteve organizado em proteger shows, não combater o racismo em toda sociedade russa. Já que os nazis não aparecem mais nos shows, sobrou pouco do antifascismo organizado.

Por conta de todos esses fatores, a violência racista diminuiu drasticamente na Rússia. De acordo com o centro de estatísticas SOVA, houveram 692 incidentes em 2007 e 93 em 2016 – uma diminuição de 86%. Os números verdadeiros podem ser ainda maiores, já que a velocidade da denúncia dos crimes acelera, quando os números diminuem.

Os motivos da ascensão e queda do fascismo e do antifascismo na Rússia são bastante localizados; provavelmente não existem muitas lições universais para serem aprendidas. De todo modo, nós podemos oferecer alguns apontamentos sobre a prática nas ruas.

As sugestões à seguir foram adquiridas através da experiência de todos esses anos na Rússia. O que apresentamos aqui é senso comum básico, mas julgando pelo que tenho lido na internet, algumas pessoas ainda se beneficiariam dessas sugestões.

Perceba que nesse texto, autodefesa também se refere a ataques preemptivos, já que não podemos esperar que a trégua com os fascistas durem para sempre.

1. Quando se trata de confronto físico, existe uma rígida hierarquia de ferramentas

Um porrete quase sempre vence mãos nuas. Uma lâmina quase sempre vence um porrete. Uma arma de fogo sempre vence uma lâmina.

Essa hierarquia de ferramentas é muito mais importante que qualquer diferença em tamanho e força: ela também acaba com a maioria das diferenças de habilidade. Com uma lâmina, você pode facilmente vencer um inimigo desarmado, mesmo que ele tenha duas vezes o seu tamanho. Leve isso em consideração se você for pequeno e fraco.

E saiba que…

2. Não existe uma prática de autodefesa universal

A prática correta de autodefesa depende completamente do contexto legal e cultural.

Por exemplo:

  • No Centro e Leste Europeu, conflitos geralmente envolvem mãos nuas, as vezes alguma arma de contusão. Apesar de eventualmente acontecer, na maioria desses países existe uma aversão cultural ao uso de facas como arma. Armas de fogo quase nunca são usadas, já que a posse é pesadamente regulada.
  • Na Grécia, mesmo a posse de facas pode levar a uma sentença pesada. Por isso, confrontos geralmente envolvem armas de contusão.
  • Na Finlândia, não é incomum que as pessoas andem com facas, e você precisa levar em conta a possibilidade de seu oponente estar carregando uma. Armas de fogo também são mais acessíveis lá, que em outras partes da Europa.
  • Nos EUA, as leis para armas de fogo são mais abertas. É preciso agir levando em consideração a possibilidade que seu oponente pode estar armado.
  • Na Rússia, a a questão cultural é fluida. De acordo com as tradições, conflitos devem ser acertados apenas com os punhos, e a legislação para armas de fogo é bastante restritiva. Mas desde a escalada no conflito de 2002 e 2011, trauma guns e facas substituíram os punhos. Espingardas criaram um equilíbrio através do medo e os confrontos cessaram quase totalmente. Por conta da pressão legal e cultural, esses ciclos se desenrolaram através de muitos anos.

A Antifa nasceu na Alemanha e se espalhou pelo Leste Europeu e Europa Central, mas a prática de lutar de mãos limpas não é aplicável em locais onde a estrutura cultural e legal não mantenha os confrontos dentro desses termos. Não existe motivo para treinar técnicas de autodefesa desarmada se seus oponente provavelmente carrega uma arma de contusão. Não existe motivo para treinar autodefesa com armas de contusão se seu oponente provavelmente carrega uma faca. Se é provável que seu oponente carregue uma arma de fogo, não existe motivo pra treinar autodefesa com facas.

Além da estrutura legal e cultural, os cenários também importam. Li um artigo sobre antifascistas organizando uma academia de power lifting nos EUA, para se prepararem para conflitos contra racistas e sexistas nas ruas e bares. Levantamento de peso é de bem pouco útil se seu objetivo for parar uma manifestação fascista. Se o cenário for sobre confrontar um racista/sexista/homofóbico aleatório na rua ou agir como segurança em um evento, aparentar ser grande talvez resolva o problema sem precisar de violência.

Isso nos leva ao nosso próximo ponto…

3. Entenda Suas Prioridades

Há menos que você seja jovem e tenha planos de se tornar um profissional na autodefesa, considere bem suas prioridades. Você não pode se preparar para todos os cenários; escolha apenas alguns. Mesmo que você não tenha que cuidar dos estudos, emprego ou da sua família agora, é bem provável que você tenha que cuidar dessas coisas nos próximos 10 anos, o tempo que levaria para você se tornar um expert universal.

Você tem uma escolha a ser feita. Se planeja encarar oponentes armados, treine autodefesa de mãos limpas. Se espera encontrar oponentes armados, descubra como sobreviver nesse cenário. Se sua expectativa é de enfrentar assediadores aleatórios ou babacas bêbados em eventos, levantamento de peso deve ajudar. É bem provável que você não vai conseguir se preparar para todos esses cenários. Concentre-se no que tem mais chance de te manter vivo e saudável.

Portanto…

4. Não treine MMA

Caso não tenha planos de trabalhar como segurança, não se concentre em lutas que focam em apenas um oponente. Isso vale pra qualquer luta que leve o oponente ao solo, incluindo wrestling e Jiu-Jitsu Brasileiro.

Se precisar lutar com vários oponentes e for ao solo com um deles, alguém vai chutar sua cabeça ou te esfaquear pelas costas. Se quer continuar vivo, você vai evitar ao máximo ir ao solo, em qualquer situação de conflito. Você deve aprender uma ou outra coisa sobre imobilizações, mas passar anos estudando a complexidade dessa arte não faz sentido se seu objetivo é sobreviver nas ruas.

Sempre me sinto triste quando leio sobre antifascistas treinando MMA. Obviamente, é uma forma de arte muito bonita. Mesmo assim, ela tem pouca relação com o tipo de autodefesa que você pode precisar em confrontos políticos. Sim, torneios antifascistas de MMA tem sido organizados nos territórios da antiga União Soviética desde 2009, mas isso acontece por uma questão cultural que não reflete a realidade das ruas. Puxar uma faca é considerado um ato repreensível; é por isso que as pessoas seguem treinando MMA mesmo quando todo mundo anda com facas ou uma trauma gun [1].

Evite qualquer técnica centenária, chinesa ou japonesa exceto se você tem como objetivo estuda-la pro resto a vida. Essas artes foram desenvolvidas para os propósitos de uma casta especializada de tempos feudais; elas exigem anos de treino dedicado para serem dominadas e envolvem armas nada práticas e ultrapassadas. Se você nasceu na aristocracia, pode se dar ao luxo de se tornar um samurai. Em outros cenários, é pouco provável.

Só você sabe o que fazer da sua vida. Se especializar em manejar o Kwan Dao ou uma Katana pode ser tão fascinante quanto montar miniaturas de estações de trem. Mas nas ruas, as três opções são igualmente inúteis, exceto que você carregue sua Gwan Dao ou Katana pra todo lugar que for.

Se você tem um emprego ou outra tarefa que exige tempo, se não treina artes marciais desde a infância, não tem um talento nato, concentre-se em aprender o essencial e as habilidades mais básicas. Se planeja enfrentar oponentes em combate desarmado, a primeira coisa é aprender como dar socos e chutes. Muay Thai é uma boa opção. Se você vive em uma área em que é mais propenso a se ver numa situação envolvendo armas de contusão e facas, eu recomendo artes marciais filipinas como Kali e Escrima – e nada mais. Se você vive em uma área onde todos carregam uma arma, arranje uma e aprenda como atirar.

E também…

Um vídeo mostrando o primeiro torneio de MMA, No Surrender, em Moscou, em Outubro de 2009.  O chefe de arbitragem, Ivan Khutorskoy, foi assassinado pela BORN um mês depois.

 

5. Esteja preparado para usar sua arma

Mesmo em países onde as normas culturais ou leis contra armas são restritivas, elas permanecem sendo usadas. Paus e pedras estão em todo canto; e se seu oponente vai procurar por eles, se estiver levando a pior. Não existe país em que você deve se concentrar apenas em combate desarmado.

Mesmo que você se prepare apenas para combate desarmado, pense como proteger seus punhos. Você não vai andar pra todo lado com luvas de boxe – e nem deve usar elas em uma briga séria. Mas se você quebrar o pulso no primeiro soco, você tá ferrado. Pense nisso. Sempre esteja preparado pra proteger seus punhos.

E quando treina com armas…

6. Não invista muito tempo estudando técnicas de desarme

O mais provável é que você nunca tenha a oportunidade de usa-las. Tentar desarmar uma pessoa armada com qualquer tipo de arma é sempre extremamente perigoso. Você deveria tentar apenas se seu oponente for estiver nitidamente bêbado ou for inexperiente e não haja nenhum outro oponente ao redor. Exceto por esses cenários, sua melhor opção é usar sua própria arma. Se você não tem uma arma e não existe uma rota de fuga… Você provavelmente tá ferrado.

Por isso, além de treinar…

7. Esteja preparado para usar o que aprendeu

Não faz sentido treinar artes marciais que usam armas se você não anda com sua arma. Treinar sua mira e não andar com a sua arma, torna ela inútil. Uma vez que tenha aprendido a técnica, você deveria portar ela sempre que você suspeitar que pode entrar em um confronto – e as vezes também em lugares onde não suspeita. Se por algum motivo isso não for possível, esteja preparado para entrar em um conflito sem sua arma.

8. E sobre sair correndo ?

Gurus da autodefesa dizem que : “Primeiramente, você deveria tentar escapar”. Geralmente é um bom conselho – mas nem sempre. Primeiro, é sempre mais fácil pegar alguém do que correr, então, só faz sentido se você acredita que é mais rápido e conhece bem a rota de fuga. Segundo, pode ser que você não seja o único com a vida e a integridade física em jogo. E se você conseguir escapar, mas isso significar deixar seu camarada para enfrentar sozinho seus adversários ?

Certamente é uma boa ideia se manter em boa forma e treinar cardio. Quase todo confronto de rua exige fôlego e ao menos um pouco de corrida. Mas você deveria estar preparado para situações em que correr não é uma opção.

Mesmo gurus podem dar maus conselhos, por isso…

9. Sempre treine com profissionais

Ou ao menos estude com instrutores que tenham bastante experiência. É divertido passar um tempo praticando com amigos de forma espontânea, mas para de fato aprender alguma coisa e desenvolver suas habilidades é preciso fazer parte de um grupo comprometido.

Sim, muitos treinadores e pessoas em academias são uns cuzões. Tanto instrutores quanto alunos podem ser hostis, metidos, sexistas, ou insensíveis de algum modo.Ainda assim, as pessoas que você vai encarar em brigas de rua também não serão nada simpáticas.

Não estou dizendo que você deveria pagar para participar de uma aula que seja insuportável. Se as outras pessoas são tão babacas que você não possa se concentrar, então não vale o dinheiro que você gasta. Mas qualquer cidade grande tem um bom número de opções; Se um instrutor ou academia não te agrada, vá atrás de outra. Se não houver outra opção, treinar sozinho ou com amigos.

Por mais que seja melhor treinar com profissionais, um instrutor profissional provavelmente não é a melhor fonte para buscar conselhos. Se você perguntar para o seu treinador como e quanto você deveria treinar, ela ou ele provavelmente vai te dizer que você deveria treinar seis dias por semana, e no sétimo ir competir. Talvez você só queira treinar para ficar seguro nas ruas, ou ao menos sair vivo delas. Nem todo antifascista precisa ser um instrutor ou lutador profissional. Se a luta que você escolheu só vai vir a ser útil depois de você praticar três vezes por semana durante cinco anos, reveja sua escolha. Uma das escolhas mais idiotas que fiz na vida foi treinar vários estilos antiquíssimos de kung-fu por anos. Nunca tive tempo ou habilidade o suficiente para tirar nada de útil.

E por último…

10. Sempre pratique sparring

Apenas sparring pode te preparar para confrontos de verdade. Você pode praticar com regras e cenários diferentes, como uma pessoa contra várias, ou dividir várias pessoas em dois grupos diferentes. Treine como sacar rapidamente sua arma. Faça isso em todo treino, mesmo que seja um iniciante. Se seu instrutor não entende a importância do sparring, mude de instrutor.

Não pegue muito pesado, você não quer ficar com nenhuma sequela permanente. Mas também não pegue muito leve.

— Cloudbuster

Eu gostaria de agradecer a Jew Bear, xAx, e aos agentes da Crimethinc. pelos valiosos comentários.

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Um exemplo de briga ao estilo hooligan. Em 2010, Arsenal Kiev, conhecidos por seus torcedores antifascistas, jogou contra o Karpaty Lviv, que é conhecida por sua torcida fascista. Muitos antifascistas da Rússia saíram em apoio ao Arsenal. Os torcefores do Arsenal foram capazes de defender seu território, mesmo tendo seus númerdos superados por mais de 2 pra 1.

 

[1] “Trauma guns” são um tipo de arma não letal criado e popularizado na Rússia, que atualmente também é parte dos arsenais de policias nos EUA