Célula, Clique, ou Grupo de Afinidade?

[tradução do capítulo 09 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

O termo “grupo de afinidade” é frequentemente utilizado em círculos anarquistas. Entretanto, existem alguns mal entendidos da natureza exata dos grupos de afinidade e como nós podemos usá-los criar mudanças radicais. Estruturas de grupos de afinidade compartilham algumas características óbvias com células e cliques, apesar deles existirem em diferentes contextos. Pode ser bastante difícil para um observador exterior determinar se um grupo específico de pessoas é uma célula, clique ou um grupo de afinidade, e isso sem dúvidas leva a confusões. Todos os três são grupos compostos por uns poucos indivíduos, digamos, de três a nove, que trabalham juntos, apoiam uns aos outros, e tem uma estrutura tipicamente fechada para pessoas de fora. Dependendo de seus objetivos, eles podem se engajar em uma multiplicidade de projetos, indo do cotidiano ao revolucionário, mas similaridades acabam aí.

Uma célula é parte de uma organização maior ou um movimento com uma política ideológica unificada. Geralmente células recebem instruções de uma comunidade maior, da qual fazem parte. Geralmente, células são orientadas pelo “trabalho”, e não entendem a socialização como um objetivo primário. Células específicas são conectadas umas com as outras (da mesma organização) por uma visão compartilhada, apesar de empregarem uma vasta gama de táticas.

Um clique, por outro lado, é um grupo de pessoas que isolaram a si mesmos de uma comunidade ou organização maior. Cliques sociais são comuns; bons exemplos podem ser encontrados em qualquer escola de ensino médio em grupos como esportistas, preppies, ou nerds. Os cliques tendem a ser isolados e preferirem criar limites rígidos entre eles mesmos e o resto da comunidade com a qual estão associados. Cliques raramente tem um foco em trabalho ou projetos.

Grupos de afinidade são coletivos autônomos de indivíduos que compartilham uma visão particular. Apesar da visão não necessariamente ser idêntica entre seus membros, um grupo de afinidade compartilha certos valores e expectativas comuns. Grupos de afinidade surgem de comunidades maiores, sejam eles ambientalistas em uma bio região específica ou membros de um grupo de hip-hop que se apresentam juntos. Dois grupos de afinidade surgindo da mesma comunidade podem ter interesses, táticas e perspectivas bastante diferentes. Essa variedade é incomum entre células. Grupos de afinidade mantém uma forte conexão com suas comunidades natais e geralmente buscam formas de se conectar com outros grupos de afinidade e organizações naquela comunidade. Dessa forma, se diferem dos cliques que buscam separar. Um grupo de afinidade também pode trabalhar de perto com outros grupos fora de sua comunidade original.

Grupos de afinidade têm a vantagem política de serem capazes de criar conexões que unem diversas comunidades. Apesar de grupos de afinidade geralmente serem grupos fechados (um criticismo comumente trazido pelos dinossauros), a maioria dos anarquistas se sentem confortáveis sendo parte de múltiplos grupos de afinidade. Essas interconexões pessoais entre grupos de afinidade podem promover uma maior afinidade entre diversas comunidades e gerar solidariedade significativa. Esse é o efeito da “polinização cruzada”. Por exemplo, um membro de um grupo de afinidade de ação direta que também é membro de um coletivo de mídia feminista podem criar oportunidades para ambos os grupos. O coletivo de mídia pode se tornar mais militante enquanto o grupo de ação direta pode se tornar mais aberto a práticas e ideias feministas. Invés de tentar fundir ação direta, mídia, e feminismo militante em um desajeitado super-grupo, a ativista pode seguir buscando seus múltiplos interesses em dois grupos que focam em seus principais interesses. Paradoxalmente, esses grupos de afinidade fechados oferecem um local seguro e acolhedor para afinidades mais amplas e desenvolverem, assim criando uma rede mais ampla de apoio mútuo, compreensão e apoio.

Enquanto é importante compreender as limitações contextuais dos modelos de célula e clique, é um erro descartar os grupos de afinidade por serem elitistas ou fechados. Grupos de afinidade oferecem imensas possibilidades por aumentar o número de conexões entre comunidades, enquanto oferecem um ambiente acolhedor para que as pessoas busquem seus interesses e afinidades particulares.

Oque é anarco-transhumanismo ?

publicado originalmente por William Gillis, em  06/01/2012, fonte: The Anarchist Library

Anarco-Transhumanismo é o entendimento de que a liberdade social está inerentemente ligada com a liberdade material, e que liberdades são incontornavelmente uma questão de expandir sua capacidade e oportunidades de engajar com o mundo ao nosso redor. É a realização que nossa resistência contra aquelas forças sociais que nos subjugaram e limitaram não é nada mais que parte do espectro de esforços para expandir a agência humana; para facilitar nossas investigações e criatividade.

Isso significa não apenas estar livre das limitações arbitrárias de nossos corpos possam impor, mas livre para moldar o mundo ao nosso redor e aprofundar o potencial de nossas conexões entre nós através dele.

Significa que as ferramentas que nós usamos deveriam ser abertamente conhecidas e infinitamente customizáveis; isso significa corpos que não estão presos em processos sobre os quais não temos agência. Saber que o desejo por escolha por trás do controle de natalidade, pela regeneração de membros e mudança de sexo é o mesmo desejo que organiza trabalhadores e incendeia prisões. É a luta para se viver livre… e por poder fazer isso por mais um ano, mais uma década, mais um século. Significa não apenas transcender as restrições de gênero, mas da genética e todas as experiências humanas anteriores. Significa lutar para que nos seja permitida a plena realização de quem e do que queremos ser, quando e onde quisermos.

Significa desafiar e alterar as condições que de outra forma nos governariam. Significa que quando as ferramentas para melhorar a nós mesmos existem, nós devemos usá-las; que ninguém deveria passar fome quando essa escassez pode ser eliminada. Significa engajar de forma vigilante com a natureza, sem a oprimir ou render-se a ela. É o conhecimento de que a vitória da classe trabalhadora será livre somente quando cada trabalhador individualmente deter os meios de produção; capaz de fabricar toda e qualquer coisa por si mesmo. É o engajamento proativo com as condições ambientais que forçam hierarquias e o inescapável coletivismo. Significa libertar nossa sociedade de hierarquias de paisagens bidimensionais, mover nossas infraestruturas destrutivas para fora da nossa biosfera e eventualmente abandonar a civilização e tomar nosso lugar como caçadores e coletores entre as estrelas.

Significa criptografia; canais inquebráveis de comunicação privada adicionadas sobres uma inquebrável colmeia de ideias e conhecimentos. Isso também significa a abolição da privacidade pública; a criação de um mundo onde as ações que tomamos um com os outros seja compartilhável e verificável instantaneamente. E finalmente será a liberdade de ultrapassar os limites de banda da nossa linguagem e nos conectarmos mais e mais diretamente um com os outros; para fundirmos mentes e transcender subjetividades individuais como desejado.

Anarco-Transhumanismo é todas essas coisas e nenhuma delas.

Bombas de Semente, Hortas Autônomas e Você

Publicado originalmente em anarchosolarpunk, em 11 de Maio de 2021

Como você, como indivíduo, pode impactar sua comunidade sendo zika pra carai semeando em locais públicos.

Se você é estadunidense está mais que familiarizado com o inferno capitalista que pontuam as cidades, subúrbios, áreas industriais e shoppings ao nosso redor. Terrenos vazios onde antes haviam lares mas agora são lembranças vazias de um passado esquecido. Parques públicos vazios onde ninguém caminha pois caminhar é esquisito e perigoso em um país e numa cultura que gira em torno de carros. Shoppings com nada além de filiais de multinacionais, pequenas manchas de folhagem morta nas sarjetas e estacionamentos. Por alguma razão, elas têm irrigação mas nada cresce lá. Imensos data centers e galpões cercados por nada além de terreno aberto. Grama alta em terrenos baldios em vizinhanças que são desertos alimentares, onde as pessoas não têm acesso a vegetais frescos e baratos.

Hora de você mudar isso. Arranje algumas sementes, um pouco de terra, e um aglutinante para manter tudo em uma linda bolinha e comece a plantar vegetais, polinizadores, plantas nativas, ervas medicinais, tudo que quiser!

Transforme desertos alimentares em florestas de alimento com muito pouco investimento e esforço.

O que é uma bomba de sementes?

Uma bomba de sementes é basicamente um monte de sementes dentro de bolinhas que você pode arremessar, jogar ou largar em um lugar onde as plantas podem crescer. Pode ser em qualquer lugar. Você passa por lugares vazios com frequência, podem ser campos, parques, terrenos vazios, ou pequenos espaços em estacionamentos com um pouco de terra.

Normalmente se usa terra, argila e sementes e as amassa no formato de uma bolinha, mas você pode usar qualquer aglutinante orgânico pra manter tudo junto.

A maioria das misturas tradicionais usa 1 xícara de sementes com 5 xícaras de composto e 2-3 xícaras de argila em pó. Se você tem argila em pó, é uma boa opção. Eu vivo no Texas então eu só preciso ir no meu quintal pra encontrar argila. Você não precisa usar argila, qualquer aglutinante dá conta do recado.

Fazendo bombas de semente com farinha!

Sementes, Sementes, Sementes

Consiga algumas sementes. Pra isso, eu tenho usado sementes de vegetais mas use qualquer coisa que você quiser ver crescer. As vezes é bom plantar algumas polinizadoras para tornar um espaço mais bonito, talvez algumas ervas medicinais se você vive em uma área em que herbalismo é algo que faz parte das práticas culturais. Com os vegetais, não tem como dar errado, todos podem comê-los, e são úteis pra quem não pode pagar por eles em um mercado ou não tem acesso a legumes frescos.

Alface e quiabo crescem muito bem onde eu vivo. Você vai precisar dar uma olhada em alguns legumes que crescem na sua região e quando eles devem ser plantados. Ou você pode só não se importar e ver oque acontece, a vida é cheia de experimentos.

Role suas sementes no aglutinante + terra / composto com um pouco de água, molde em bolinhas, e deixe secar.

Agora você está pronto para começar a plantar. Eu estive no parque do meu bairro e vi que a prefeitura instalou um irrigador próximo de uma jovem muda de carvalho. Isso resolve qualquer problema que pudesse surgir. Há bastante água durante os duros verões do Texas, vindos da irrigação e do escoamento da chuva de uma pequena colina. Proteção contra cortadores de grama por conta dos suportes tutorando as jovens árvores e alguma sombra à tarde vinda das mesmas árvores. Talvez você não encontre um lugar propício como esse, mas a natureza sempre encontra um caminho, tente de qualquer forma.

A História das bombas de semente

Historicamente, pelo que podemos ver, essa prática parece vir do Japão onde é chamado Tsuchi Dango ou “Bolinho de Terra”. Em 1930 Masanobu Fukuoka escreveu o livro “A Revolução de Uma Palha”, que reviveu a prática durante uma época de mudança na agricultura. Se você tem interesse em agricultura regenerativa, ele escreveu muitas sobre o tema e muitos fãs de hortas populares seguem as técnicas que ele aplicava.

“Por que fazer isso? É só comprar comida no mercado.”

Nem todos que vivem sob o capitalismo podem pagar por alimento.

Reflita um minuto sobre isso. Nós vivemos em um dos países mais ricos da história do nosso planeta e ainda assim grande parte da população não tem acesso a frutas e vegetais frescos.
Em muitos lugares sequer existem lojas onde se possa comprar comida de verdade. No interior de muitas cidades e áreas rurais as únicas opções são fast food, carregar suas compras em um péssimo sistema de transporte público, ou dirigir até um supermercado distante (se você tiver sorte o suficiente de ter um carro).

Autonomia é liberdade

Para sermos capazes de mudar esse sistema social capitalista, individualizado, altamente atomizado, racista e exploratório em que vivemos, precisamos construir autonomia. Precisamos ser capazes de sobreviver sem intervenção do estado (mesmo que o estado escolha nos ajudar). Não podemos depender de cadeias de abastecimento normais para nossas necessidades básicas, Covid-19 de fato nos mostrou como as cadeias de suprimento podem rapidamente colapsar durante uma catástrofe. Se os estados capitalistas não agem para combater a pobreza, fome, a escassez de comida e desertos alimentares, o povo vai precisar se unir e resolver seus problemas. Sem os problemas arbitrários, sem as diretrizes de qualificação ou regulamentações exageradas. Se você precisa de alimento, você recebe alimento. Se uma comunidade não tem acesso a alimentos frescos, nós plantamos. Fazendo isso nós nos fortalecemos coletivamente. Nenhum estado, governo, político, ou força é capaz de quebrar um grupo de pessoas trabalhando junto para resolver seus problemas.



Mais Informações

Como começar uma horta descentralizada

Se você está interessado nestas ideias, isso se chama poder dual. Construir redes autônomas para resolver problemas que envolvam comida, água, educação, riqueza, pobreza, moradia, está dentro do que chamamos apoio mútuo. Você pode não se considerar “de esquerda”, mas se você busca se libertar da exploração e quer dar fim a exploração humana, talvez você seja um.

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Um Anarquista Contra Hitler

Friedrich Kniestedt no Brasil

Tom Goyens

publicado originalmente em tomgoyens.substack.com

29 de Dezembro, 2022

Em Outubro de 1945, sessenta e seis alemães vivendo no Brasil peticionaram ao governo, exigindo que fossem reconhecidos como ativistas anti-nazismo, diferente de seus compatriotas que simpatizavam com o Terceiro Reich e agora estavam sendo assediados. O representante da petição era Friedrich Kniestedt, um anarquista alemão de setenta e dois anos, pinceleiro e editor, figura de liderança do movimento anti-nazista do Brasil, onde os anarquistas desempenharam um papel significante.

Vamos olhar mais de perto para os anarquistas transnacionais combatendo o militarismo e fascismo através da figura de Kiestedt. A razão é simples: para melhor nos capacitar a lidar com a atual ascensão do fascismo da Extrema Direita em inúmeros países e para descobrir as possibilidades de uma resistência antifascista com sólida tendência anarquista. Kniestedt nunca serviu ao exército e nunca cometeu um ato de violência, mesmo assim lutou incansavelmente contra o autoritarismo. Ele começou a vida combatendo o Kaiser e acabou enfrentando Hitler; deixou sua terra nativa às vésperas da Grande Guerra apenas para enfrentar os camisas marrons no Sul do Brasil. Militantes como Kniestedt reimaginaram as possibilidades anarquistas de acordo com as novas circunstâncias de repressão e exílio. Eles atacaram o autoritarismo na Direita assim como na Esquerda e debateram o quanto colaborar com grupos liberais para conter a maré hitlerista. Anarquistas alemães, em especial, combateram duramente a imagem nazificada de sua terra natal. Todas essas reflexões são tão relevantes hoje quanto era em 1933.

Friedrich Kniestedt era apenas um adolescente quando se tornou socialista, no fim dos anos de 1880, quando a Lei Anti-Socialistas de Bismarck estava com força total. Depois de 1890, quando a lei repressiva foi revogada, e um movimento abertamente socialista era possível novamente, continuou a frequentar encontros socialistas. Kniestedt se voltou ao anarquismo como artesão autônomo, prometendo se opor ao centralismo, autoritarismo e militarismo. Esteve ativo no movimento de trabalhadores e começou a falar publicamente, o que resultou em vários encontros com a lei, incluindo uma sentença de nove meses de prisão quando tinha vinte anos. Ele leu Peter Kropotkin, Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon, Max Stirner, e especialmente Leon Tolstoy, que por sua vida toda foi uma influência em seu anti-militarismo e oposição a violência de estado. Através de seu ativismo independente, se tornou amigo de anarquistas conhecidos como Gustav Landauer e Eich Mühsam, que mais tarde o levou ao anarquismo.

Conforme a Alemanha imperial escalava seus gastos militares, as atividades de Kniestedt foram sendo mais vigiadas. Esse foi um dos motivos que levou sua família a se mudar para Paris em 1908, onde continuou sua agitação antimilitarista e se tornou tesoureiro para um grupo que auxiliava pessoas radicais no exílio. Ele também ouviu a fala de Rudolf Rocker quando esteve em Londres. Entretanto, tensões internas do movimento e a descoberta de espiões eram profundamente frustrantes, e Kniestedt começou a pensar em sair da vida política. Em 1909, ele e sua família decidiram se unir a uma comunidade cooperativa nas florestas tropicais do Brasil, mas essa experiência comunal foi uma decepção por diversos motivos; atividades anarquistas sobre antimilitarismo não eram permitidas por medo de se oporem ao governo. Kniestedt tentou viver como agricultor, então se mudou brevemente para São Paulo, mas eventualmente retornou à Alemanha em 1912. Mas sua terra natal estava ainda pior; havia se tornado uma sociedade militarizada, envolta em chauvinismo hierárquico e mortificante obediência cega, como Kniestedt declarou [1]. Ele voltou ao circuito de palestras, chamando trabalhadores a recusarem se tornarem assassinos a serviço do estado e a apoiarem uma greve geral para barrarem a guerra. Em 27 de Janeiro de 1913, Kniestedt fez uma fala em um dos maiores protestos de desempregados da história da Alemanha, mas novamente a vigilância levou a prisões e a cadeia [2]. Refletindo sua recente experiência transatlântica, Kniestedt agora via o Brasil como uma terra onde ainda existia alguma liberdade sem a mentalidade de obediência cega a um líder. O Brasil podia ser a terra do futuro. Então, mais uma vez a família emigrou para o Brasil. “Deixei a Europa,” Kniestedt escreveu mais tarde, “sabendo que eu havia dado o máximo dentro das minhas habilidades e energias, para impedir a guerra” [3] Kniestedt partiu de Amsterdam; dois dias depois a Alemanha declarou guerra com a Rússia.

Dessa vez Kniestedt não se instalou no interior mas em Porto Alegre, a capital do estado mais ao sul, o Rio Grande do Sul, onde viveu entre trabalhadores germano-brasileiros e se tornou uma das lideranças da anarcossindicalista Associação de Trabalhadores Socialistas Alemães. Guerra e revolução na terra natal também abalou a vida de outros anarquistas alemães. Enquanto Kniestedt veio para o Brasil, Rudolf Rocker retornou à Alemanha após a guerra para ajudar e reviver o movimento anarcossindicalista. O amigo de Kniestedt, Erich Mühsam foi liberto da prisão, mas Landauer, com quem ele havia compartilhado o púlpito, teve um terrível fim nas mãos das milícias de extrema-direita. As tensões políticas e ideológicas da República de Weimar puderam ser sentidas nas comunidades em diáspora do sul do Brasil, onde Kniestedt emergiu como uma das principais figuras do movimento de trabalhadores. De 1920 a 1930, ele editou o jornal anarquista Der freire Arbeiter, o único periódico anarquista de língua alemã nas Américas, e abriu uma livraria internacional. Nesse papel, ele atacou o chauvinismo racial enquanto promovia tradições humanistas radicais. Em 1925, por exemplo, ele ridicularizou os alemães conservadores de Porto Alegre por celebrarem o aniversário do Kaiser, sete anos após sua renúncia [4].

No começo dos anos 30, Kniestedt parecia afastado do movimento quando foi abordado por um empreendedor que o ofereceu uma fábrica de vassouras, mas no fim, ele se recusou a participar da exploração dos trabalhadores. Enquanto isso, elementos nazistas se tornaram mais ativos no Brasil depois de tomarem poder na Alemanha. O Brasil era uma terra fértil para fascistas buscando influenciar as comunidades italianas e alemãs, especialmente após o populista e autocrata Getúlio Vargas chegar ao poder em 1930. A polícia brasileira tolerava os grupos nazistas encorporados no Nazi Party’s Foreign Organization. Em 1932, quando os camisas marrons tentaram se apoderar da sociedade de apoio mútuo que Kniestedt era um dos representantes, os anarquistas revidaram e venceram [5]. Ele e outros fundaram a sessão de Porto Alegre da Liga dos Direitos Humanos, que reunia várias vertentes da esquerda, mas se consolidou como grupo anarquista. Lançaram o jornal Aktion com Kniestedt como editor e uma circulação de 9.000 exemplares (com 3.000 sendo enviados para Alemanha). Esse documento se tornou a única organização anti-nazista no Brasil e um competidor com os jornais de língua alemã simpáticos ao nazismo e assim combatendo o fascismo [6].

O ativismo nazista no Brasil continuou a perseguir e intimidar, e tiveram algum sucesso se infiltrando em escolas onde se falava alemão e associações culturais. Kniestedt reportou incidentes onde o ideal anarquista de autodeterminação derrotou esses abusos. Por exemplo, quando nazistas entraram para a Federação de Ginástica, a maior organização germano-brasileira em Porto Alegre, membros enfurecidos se organizaram e expulsaram os nazistas na assembleia geral seguinte [7]. O jornal antifascista Aktion também se tornou alvo com ativistas nazistas acusando seu editor de difamação ou de ser comunista, acusações que obviamente envolveram a polícia [8]. Novamente, Kniestedt ganhou dois casos de difamação e relançou seu jornal sob dois nomes diferentes. Aktion era uma ameaça para o Terceiro Reich. Em 1937, a intimidação nazistas chegou a sua própria família quando descobriu que seu filho Max foi forçado a integrar a Frente de Trabalho Alemã, um grupo nazista, por medo de perder seu trabalho. Kniestedt, agora com aproximadamente sessenta anos, foi para prisão e para a cadeia inúmeras vezes, o tornando uma figura notória no Brasil.

Em 1934, Kniestedt teve a oportunidade de falar diretamente para o regime nazista como se sentia. Quando o Ministro das Relações Exteriores nazista revogou sua cidadania e a de outros vinte e sete exilados, Kniestedt respondeu que se sentia honrado com a decisão. “Me considero um opositor desse Estado,” escreveu , “Considero meu dever fazer o que sempre fiz, dizer somente a verdade e agir sobre ela” [9]. Declarou a si mesmo um cidadão do mundo, sem estados. Apesar de celebrar a diversidade brasileira, ele não estava ansioso para se naturalizar. Em 1936, declarou que se o Brasil continuasse a negar o direito de asilo aos cidadãos do mundo, ele juntaria suas coisas e encontraria outro lugar. Enquanto isso, Rudolf e Miller haviam chego aos EUA em 1933 onde palestraram sobre os perigos do nacionalismo, antissemitismo, e um mundo à beira da guerra. Os Rocker acreditavam que cerca de metade dos germano-estadunidenses apoiariam Hitler. Eles também se sentiam apátridas, mas a constante incerteza de seus passaportes causavam grande ansiedade. Isso mostra quão ineficiente era a política de emigração estadunidense frente um iminente desastre humanitário na Europa.

Quando os Estados Unidos e o Brasil foram à guerra com a Alemanha, Rocker e Kniestedt anunciaram apoio aos Aliados. Essa era uma mudança de suas posições anti guerra de 1914, mas agora, ambos traziam o mesmo argumento em favor do apoio, o que provocou criticismo por parte de alguns anarquistas. Para Rocker, não era sobre conservar democracias burguesas mas sobre preservar o que chamava de “possibilidades de livre desenvolvimento” [10] Para Kniestedt uma vitória dos Aliados a possibilidade de um novo movimento de trabalhadores e alguns direitos e liberdades democráticas. Em 1943, numa entrevista, Kniestedt explicou pelo quê o Movimento de Alemães Antinazistas lutava: um acordo com a Declaração de Casablanca que exigia rendição incondicional sem punições injustas do povo alemão, repúdio ao racismo e antissemitismo, a união de todos os alemães livres; um apelo para os prisioneiro de guerra alemães juntarem-se ao movimento; construindo sociedades de apoio mútuo e ajudando fugitivos, e uma saudação ao povo Sul americano que haviam recebido bem os alemães livres. Em 1945, Rocker e Kniestedt, ambos com setenta e dois anos, ajudaram a organizar uma campanha de apoio à anarquistas vítimas do fascismo, juntos de Helmut Rüdiger, um anarquista de quarenta e dois anos em exílio na Suécia.

É fato notório que um movimento antifascista, liderado por anarquistas e esquerdistas sem afiliações, foi capaz de resisti ao nazismo através da palavra impressa e da ação direta pacífica. A força desse movimento liderado por anarquistas no Brasil foi significativa, dado o fato que manteve uma contínua infraestrutura jornalística e organizacional por vinte anos. Mesmo elementos nazistas no Brasil entenderam que esse contramovimento era de alguma forma efetivo e não podia ser ignorado. É preciso deixar explicado que Kniestedt e Rocker não eram pacifistas; eles eram militante antimilitarismo nos dizendo que quando se trata de fascismo nós não podemos dar a outra face. Eles não podiam impedir guerras globais, mas eles inspiraram e preservaram autonomias locais.

***

Tom Goyens é professor na Universidade de Leuven, Bélgica; e PhD em História.

[1] Kniestedt, Fuchsfeuerwild: Erinnerungen eines anarchistischen Auswanderers nach Rio Grande do Sul, memórias de Friedrich Kniestedt (1873-1947) (Hamburg: Verlag Barrikade, 2013), p. 101.

[2] Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 111-2.

[3] Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 134. [4] [Kniestedt,] “Kaiser Geburtstagfeier 1925,” Der freie Arbeiter (Porto Alegre), January 1925.

[5] Deutsches Volksblat (Porto Alegre), January 31, 1933, quoted in Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 171.

[6] Kniestedt, “Rück-und Ausblick,” Aktion: Organ der Liga für Menschenrechte, Ortsgruppe: Porto Alegre (Porto Alegre), December 23, 1935, p. 1. See also Rivadavia de Souza, “Começou Combatendo o Kaiser e Acabou Combatendo Hitler,” Diretrizes (Rio de Janeiro), June 11, 1942, p. 16.

[7] [Kniestedt,] “Vorbeigelungen,” Alarm (Porto Alegre), February 15, 1937.

[8] “Processos por crime de injurias impressas,” O Estado (Florianopolis), June 9, 1934, p. 4.

[9] Kniestedt to Frick, February 10, 1935 (Porto Alegre), printed in Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 182.

[10] Qoted in Peter Wienand, Der ‘geborene’ Rebell: Rudolf Rocker, Leben und Werk (Berlin: Karin Kramer Verlag, 1981), p. 419. 3

Um Anarquista Contra Hitler

Friedrich Kniestedt no Brasil

Tom Goyens

publicado originalmente em tomgoyens.substack.com

29 de Dezembro, 2022

Em Outubro de 1945, sessenta e seis germano-brasileiros peticionaram ao govern do Brasil, exigindo que fossem reconhecidos como ativistas anti-nazismo, diferente de seus compatriotas que simpatizavam com o Terceiro Reich e agora estavam sendo perseguidos. O representante da petição era Friedrich Kniestedt, um anarquista alemão de setenta e dois anos, pinceleiro e editor, figura de liderança do movimento anti-nazista do Brasil, onde os anarquistas desempenharam um papel significante.

Vamos olhar mais de perto para os anarquistas transnacionais combatendo o militarismo e fascismo através da figura de Kiestedt. A razão é simples: para melhor nos capacitar a lidar com a atual ascensão do fascismo da Extrema Direita em inúmeros países diferentes e para descobrir as possibilidades de uma resistência antifascista com sólida tendência anarquista. Kniestedt nunca serviu ao exército e nunca cometeu um ato de violência, mesmo assim lutou incansavelmente contra o autoritarismo. Ele começou a vida combatendo o Kaiser e acabou enfrentando Hitler; ele deixou sua terra nativa as vésperas da Grande Guerra apenas para enfrentar os camisas marrons no Sul do Brasil. Militantes como Kniestedt reimaginaram as possibilidades anarquistas de acordo com as novas circunstâncias de repressão e exílio. Eles atacaram o autoritarismo da Direita assim como na Esquerda e debateram o quanto colaborar com grupos liberais para conter a maré hitlerista. Anarquistas alemães, em especial, combateram duramente a imagem nazificada de sua terra natal. Todas essas reflexões são tão relevantes hoje quanto era em 1933.

Friedrich Kniestedt era apenas um adolescente quando se tornou socialista, no fim dos anos de 1880, quando a Lei Anti-Socialistas de Bismarck estava com força total. Depois de 1890, quando a lei repressiva foi revogada, um movimento abertamente socialista era possível novamente, e ele continuou a frequentar encontros socialistas. Kniestedt se voltou ao anarquismo como artesão autônomo, prometendo se opor ao centralismo, autoritarismo e militarismo. Esteve ativo no movimento de trabalhadores e começou a dar palestras, o que resultou em vários encontros com a lei, incluindo uma sentença de nove meses de prisão quando tinha vinte anos. Ele leu Peter Kropotkon, Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon, Max Stirner, e especialmente Leon Tolstoy, que se por sua vida toda foi uma influência no seu anti-militarismo e oposição a violência de estado. Através de seu ativismo independente, se tornou amigo de anarquistas conhecidos como Gustav Landauer e Eich Mühsam, que mais tarde o levou ao anarquismo.

Conforme a Alemanha imperial escalava seus gastos militares, as atividades de Kniestedt foram sendo mais vigiadas. Esse foi um dos motivos que levou sua família a se mudar para Paris em 1908, onde continuou sua agitação antimilitarista e se tornou tesoureiro para um grupo que auxiliava pessoas radicais em exílio. Ele também ouviu a fala de Rudolf Rocker quando esteve em Londres. Entretanto, tensões internas do movimento e a descoberta de espiões eram profundamente frustrantes, e Kiestedt começou a pensar em sair da vida política. Em 1909, ele e sua família decidiram se unirem a uma comunidade cooperativa nas florestas tropicais do Brasil, mas essa experiência comunal foi uma decepção por diversos motivos; atividades anarquistas sobre antimilitarismo não eram permitidas por medo de se oporem ao governo. Kniestedt tentou viver como agricultor, então se mudou brevemente para São Paulo, mas eventualmente retornou a Alemanha em 1912. Mas sua terra natal estava ainda pior; havia se tornado uma sociedade militarizada envolta em chauvinismo hierárquico e obediência cega mortificante, como Kniestedt declarou [1]. Ele voltou ao circuito de palestras, chamando trabalhadores a recusarem se tornarem assassinos a serviço do estado e a apoiarem uma greve geral para barrarem a guerra. Em 27 de Janeiro de 1913, Kniestedt fez uma fala em um dos maiores protestos de desempregados da história da Alemanha, mas novamente a vigilância levou a prisões e a cadeia [2]. Refletindo sua recente experiência transatlântica, Kniestedt agora via o Brasil como uma terra onde ainda existia alguma liberdade sem a mentalidade de obediência cega a um líder. O Brasil podia ser a terra do futuro. Então, mais uma vez a família emigrou para o Brasil. “Deixei a Europa,” Knietedt escreveu mais tarde, “sabendo que eu havia dado o máximo dentro das minhas habilidades e energias, para impedir a guerra” [3] Kniestedt partiu de Amsterdam; dois dias depois a Alemanha declarou guerra com a Rússia.

Dessa vez Kniestedt não se instalou no interior mas em Porto Alegre, a capital do estado mais ao sul, o Rio Grande do Sul, onde viveu entre trabalhadores germano-brasileiros e se tornou uma das lideranças da anarcossindicalista Associação de Trabalhadores Socialistas Alemães. Guerra e revolução na terra natal também abalou a vida de outros anarquistas alemães. Enquanto Kniestedt veio para o Brasil, Rudolf Rocker retornou a Alemanha após a guerra para ajudar e reviver o movimento anarcossindicalista. O amigo de Kniestedt, Erich Mühsam foi liberto da prisão, mas Landauer, com quem ele havia compartilhado o púlpito, teve um terrível fim nas mãos das milícias de extrema-direita. As tensões políticas e ideológicas da República de Weimar puderam ser sentidas nas comunidades em diáspora do sul Brasil, onde Kniestedt emergiu como uma das principais figuras do movimento de trabalhadores. De 1920 a 1930, ele editou o jornal anarquista Der freire Arbeiter, o único periódico anarquista de língua alemã nas Américas, e abriu um livraria internacional. Nesse papel, ele atacou o chauvinismo racial enquanto promovia tradições humanistas radicais. Em 1925 por exemplo, ele ridicularizou os alemães conservadores de Porto Alegre por celebrarem o aniversário do Kaiser, sete anos após sua renúncia [4].

No começo dos anos 30, Kniestedt parecia afastado do movimento quando foi abordado por um empreendedor que o ofereceu uma fábrica de vassouras, ma sno fim, ele se recusou a participar da exploração dos trabalhadores. Enquanto isso, elementos nazistas se tornaram mais ativos no Brasil depois de tomarem poder na Alemanha. O Brasil era uma terra fértil para fascistas buscando influencias as comunidades italianas e alemãs, especialmente após o populista e autocrata Getúlio Vargas chegou ao poder em 1930. A polícia brasileira tolerava os grupos nazistas encorporados no Nazi Party’s Foreign Organization. Em 1932, quando os camisas marrons tentaram se apoderar da sociedade de apoio mútuo que Kniestedt era um dos representantes, os anarquistas revidaram e venceram [5]. Ele e outros fundaram a sessão de Porto Alegre da Liga dos Direitos Humanos, que reunia várias vertentes da esquerda, mas se consolidou como grupo anarquistas. Elas lançaram o jornal Aktion com Kniestedt como editor e uma circulação de 9.000 exemplares (com 3.000 sendo enviados para Alemanha. Esse documento se tornou a única organização anti-nazista no Brasil e um competidor com os jornais de língua alemã simpáticos ao nazismo e assim combatendo o fascismo [6].

O ativismo nazista no Brasil continuou a perseguir e intimidar, e tiveram algum sucesso se infiltrando em escolas onde se falava alemão e associações culturais. Kniestedtd reportou incidentes onde o ideal anarquista de autodeterminação derrotou esses abusos. Por exemplo, quando nazistas entraram a Federação de Ginástica, a maior organização germano-brasileira em Porto Alegre, membros enfurecidos se organizaram e expulsaram os nazistas na assembleia geral seguinte [7]. O jornal antifascista Aktion também se tornou alvo com ativistas nazistas acusando seu editor de difamação ou de ser comunista, acusações que obviamente envolveram a polícia [8]. Novamente, Kniestedt ganhou dois casos de difamação e relançou seu jornal sob dois nomes diferentes sobre diferentes nomes. Aktion era uma ameaça para o Terceiro Reich. Em 1937, a intimidação nazistas chegou a sua própria família quando descobriu que seu filho Max foi forçado a integrar a Frente de Trabalho Alemã, um grupo nazista, por medo de perder seu trabalho. Kniestedt, agora com aproximadamente sessenta anos, foi para prisão e para a cadeia inúmeras vezes, o tornando uma figura notória no Brasil.

Em 1934, Kniestedt teve a oportunidade de falar diretamente para o regime nazista como se sentia. Quando o Ministro das Relações Exteriores nazista revogou sua cidadania e a de outros vinte e sete exilados, Kniestedt respondeu que se sentia honrado com a decisão. “Me considero um opositor desse Estado,” escreveu , “Considero meu dever fazer o que sempre fiz, dizer somente a verdade e agir sobre ela” [9]. Declarou a si mesmo um cidadão do mundo, sem estados. Apesar de celebrar a diversidade brasileira, ele não estava ansioso para se naturalizar. Em 1936, declarou que se o Brasil continuasse a negar o direito de asilo aos cidadãos do mundo, ele juntaria suas coisas e encontraria outro lugar. Enquanto isso, Rudolf e Miller haviam chego aos EUA em 1933 onde palestraram sobre os perigos do nacionalismo, antissemitismo, e um mundo à beira da guerra. Os Rocker acreditava que cerca de metade dos germano-estadunidenses apoiariam Hitler. Eles também se sentiam apátridas, mas a constante incerteza de seus passaportes causavam grande ansiedade. Isso mostra quão ineficiente era a politica de imigração estadunidense frente um iminente desastre humanitário na Europa.

Quando os Estados Unidos e o Brsil foram a guerra com a Alemanha, Rocker e Kniestedt anunciaram apoio aos Aliados any. Esse era uma mudança de suas posições antiguerra de 1914, mas agora, ambos traziam o mesmo argumento em favor do apoio, o que provocou criticismo por parte de alguns anarquistas. Para Rocker, não era sobre conservar democracias burguesas mas sobre preservar oque chamava de “possibilidades de livre desenvolvimento” [10] Para Kniestedt uma vitória dos Aliados a possibilidade de um novo movimento de trabalhadores e alguns direitos e liberdades democráticas. Em 1943, numa entrevista, Kniestedt explicou pelo quê o Movimento de Alemães Antinazistas lutava: um acordo com a Declaração de Casablanca que exigia redição incondicional sem punições injustas do povo alemão, repúdio ao racismo e antissemitismo, a união de todos os alemães livres; um apelo para os prisioneiro de guerra alemães juntarem-se ao movimento; construindo sociedades de apoio mútuo e ajudando fugitivos, e uma saudação co povo Sul americano que haviam recebido bem os alemães livres. Em 1945, Rocker e Kniestedt, ambos com setenta e dois anos, ajudaram a organizar uma campanha de apoio a anarquistas vítimas do fascismo, juntos de Helmut Rüdiger, um anarquista de quarenta e dois anos em exílio na Suécia.

É fato notório que um movimento antifascista, liderado por anarquistas e esquerdistas sem afiliações, foi capaz de resisti ao nazismo através da palavra impressa e da ação direta pacífica. A força desse movimento liderado por anarquistas no Brasil foi significante, dado o fato que manteve uma continuada infraestrutura jornalística e organizacional por vinte anos. Mesmo elementos nazistas no Brasil entenderam que esse contramovimento era de alguma forma efetivo e não podia ser ignorado. É preciso deixar explicado que Kiestedt e Rocker não eram pacifistas; eles eram militante antimilitarismo nos dizendo que quando se trata de fascismo nós não podemos dar a outra face. Eles não podiam impedir guerras globais, mas eles inspiraram e preservaram autonomias locais.

***

Tom Goyens é professor na Universidade de Leuven, Bélgica; e PhD em História.

[1] Kniestedt, Fuchsfeuerwild: Erinnerungen eines anarchistischen Auswanderers nach Rio Grande do Sul, memórias de Friedrich Kniestedt (1873-1947) (Hamburg: Verlag Barrikade, 2013), p. 101.

[2] Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 111-2.

[3] Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 134. [4] [Kniestedt,] “Kaiser Geburtstagfeier 1925,” Der freie Arbeiter (Porto Alegre), January 1925.

[5] Deutsches Volksblat (Porto Alegre), January 31, 1933, quoted in Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 171.

[6] Kniestedt, “Rück-und Ausblick,” Aktion: Organ der Liga für Menschenrechte, Ortsgruppe: Porto Alegre (Porto Alegre), December 23, 1935, p. 1. See also Rivadavia de Souza, “Começou Combatendo o Kaiser e Acabou Combatendo Hitler,” Diretrizes (Rio de Janeiro), June 11, 1942, p. 16.

[7] [Kniestedt,] “Vorbeigelungen,” Alarm (Porto Alegre), February 15, 1937.

[8] “Processos por crime de injurias impressas,” O Estado (Florianopolis), June 9, 1934, p. 4.

[9] Kniestedt to Frick, February 10, 1935 (Porto Alegre), printed in Kniestedt, Fuchsfeuerwild, 182.

[10] Qoted in Peter Wienand, Der ‘geborene’ Rebell: Rudolf Rocker, Leben und Werk (Berlin: Karin Kramer Verlag, 1981), p. 419. 3

A Internet sempre foi anarquista, por isso as Anarquistas precisam aprender a serem responsáveis por opera-la

publicado originalmente por Tech Learning Collective 2020-10-08

O princípio fundamental do Anarquismo é a resistência a um Archos, grego para

“mestre”. Advogar pelo anarquismo é se posicionar em oposição a um mestre, ou seja, reivindicar o direito fundamental de auto determinação, autonomia, e liberdade de um sistema centralizado de controle (especialmente controle coercitivo). Agir de maneira anárquica significa agir independente de um mestre. Não significa agir de maneira não coordenada ou desorganizada, e nem sempre significa uma total ausência de camadas de responsabilidades, mais comumente conhecidas como “hierarquias”.

A Internet é anarquista pois o parágrafo acima descreve não apenas os protocolos básicos de operação da Internet como Ethernet e TCP/IP, mas também as intenções originais de seus criadores. Quando Bob Metcalfe inventou a Ethernet em 1970, ele intencionalmente criou seu sistema de maneira que funcionaria anárquicamente. Diferente de tecnologias competidoras daqueles tempos como Token Ring, na qual participantes individuais se distinguiam entre si baseado em qual deles detinha todo o poder de falar em determinado momento (o portador do “token” da rede), a Ethernet de Metcalfe propositalmente permitia que o aparelho de qualquer participante pudesse dizer qualquer coisa na rede a qualquer momento que ele desejasse. Colisões e conflitos eram resolvidos de forma independente, pelos aparelhos individuais que estava criando o conflito, através de um simples conjunto de regras ( carrier sense multiple access with collision detection, ou CSMA/CD), um processo sem a medição de controladores externos.

Muitos engenheiros acreditaram que essa abordagem seria muito caótica para ser bem-sucedida. Como podia um sistema de coordenação funcionar sem um comando central ? Isso seria pura anarquia!

Hoje, toda conexão com a Intenet, rede local, uplink telefônico, datacenter backhaul, e sinal de WiFi que chega ao seu computador usa Ethernet. A abordagem anarquista se provou mais simples, mais eficiente, e absolutamente mais exitosa. Isso não é nenhuma surpresa para nenhum anarquista praticante, de todo modo muitos anarquistas praticantes ainda não reconhecem o anarquismo em ação quando postam mais um tuíte.

A maioria das pessoas, incluindo e talvez especialmente a maior parte dos tecnologistas digitais, são capazes de compreender intuitivamente os princípios de coordenação anárquicos. Existe uma miríade de exemplos modernos de tecnologias com nomes como algoritmos de concenso, orquestra de clusters, e distributed ledgers (como as “blockchains”) que, quando você para para analisa-las, em seus fundamentos, são abordagens anárquicas para resolução de problemas complexos em ambientes com vários níveis de confiança entre os participantes.

Ferramentas de organização de clusters de larga escala como Kubernetes, uma invenção da Google, funcionam primariamente graças a coordenação de uma série componentes cada um com uma responsabilidade específica, organizados horizontalmente para agirem independente uns dos outros, apenas respondendo a mudanças em seu ambiente conforme elas acontecem. O próprio Certificate Transparency Log (CTL) da Internet, que audita a emissão de certificados de segurança de websites como os que são oferecidos gratuitamente para donos de websites pela Let’s Encrypt, é um imenso banco de dados de concenso distribuído, mantido por muitas organizações independentes que usam a mesma tecnologia em que se baseia a Bitcoin. A própria espinha dorsal da Internet o Domain Name System (DNS) e o Border Gateway Protocol (BGP), são sistemas delegáveis onde qualquer um, a qualquer hora, pode participar simplesmente conectando-se com um computador com software livre e de código aberto na Internet e reivindicando responsabilidade sobre uma nova região autônoma chamada “domínio” na linguagem do DNS ou um “autonomous system number” (ASN) na linguagem do BGP..

Para os recém iniciados, isso tudo soa bastante frágil. Ainda assim, de algum modo, a Internet se provou surpreendentemente resiliente. Mas a maioria dos tecnologistas não são capazes de ver os paralelos entre sua amada tecnologia e o ponto de vista anarquista especialmente por que não passam muito tempo pensando sobre organização e política. Ao menos, não além do próximo ciclo eleitotral a cada quatro anos.

Isso precisa mudar, E nós somos a mudança.

Como ? Tal mudança não vai acontecer em cursos ou iniciativas tipo “aprenda a programar”. Não acontecerá através de campanhas sobre diversidade patrocinadas e centradas dentro da indústria da tecnologia. Tecnologistas, como a maioria das pessoas em uma posição social confortável e com posições sociais privilegiadas e estratificação de classes, não são propensas a examiar seus preconceitos ou mudar sua visão de mundo. É pouco razoável e estratégicamente imprudente de nossa parte esperar que isso ocorra.

Sendo sucinto, o custo de mudar a visão de mundo de um indivíduo é um esforço imenso. Como estratégia ampla, não é plausível. Não vale a pena lutar a “batalha pelos corações e mentes”, ao menos, não diretamente, pois o que muda corações e mentes não é a razão, mas a experiência. Não é citando fatos sobre o presente, mas tomando ações que inspirem a imaginação sobre o futuro. Não é engajando em debates, mas de fato fazendo mudanças concretas nas circusntâncias materias de alguém.

Já o custo de se treinar pessoas radicais em tecnologias modernas de informação, por outro lado, é menor. Também é difícil, certamente, mas aprender um novo conjunto de habilidades não é nem de longe tão difícil quanto aprender uma visão de mundo nova e totalmente oposta. Como estratégia geral, “tecnologizar radicais” tem potenciais ilimitados, enquanto “radicalizar tecnocratas” tem se provado uma desastrosa perda de tempo.

O cenário ativista de hoje é bem diferente dos dias das marchas dos Direitos Civis, do Movimento Anti Guerra, ou mesmo do Movimento Anti-Globalização, anterior ao 9/11. Se devemos cruzar um tipo diferente de terreno, nós precisamos de de um tipo difrente de veículo.

Essa não é uma ideia particularmente nova. Alguns vão se lembrar das Crypto Wars dos 1980 e 1990, nas quais os governos reservaram o uso de criptografia unicamente para usos militares. Cypherpunks e o começo da cultura “Hacker” nasce dessa época. Mas nem cypherpunks nem comunidades “hacker” eram particularmentre anarquistas, nem em ideologia nem em prática. Invés disso eles importaram e espelharam ideias vigentes como gênero, economia, e estereótipos raciais, gastando boa parte de seu tempo ingenuamente se imaginando em alguma longínqua utopia onde a mera existência de tecnologias baseadas em métodos anárquicos iriam inevitavelmente levar a uma reforma na sociedade com igualdade e justiça para todos mesmo quando a realidade se voltava cada vez mais rumo distopias dignas de pesadelos.

y the time they awoke from their Matte-fueled reveries several decades later, their world had been colonized and their comrades would be targeted as criminals under laws like the Computer Fraud and Abuse Act enacted a decade or more earlier. Famous exceptions such as Pirate Bay founder Peter Sunde notwithstanding, the earlier generation of hackers fumbled because they failed to recognize and center the importance of the anarchist principles underlying the very technologies they wrongly treated as inherently liberating.

Hacker tecnicamente habilidosos se embrulharam no brilho de seus computadores da mesma maneira que políticos se embrulham nas bandeiras de seus países. Em sua maioria, eles ignoraram as forças da indutrialização re-centralizando a Internet e a transformando em imensos shopping centers como Facebook. Décadas depois, quando acordaram de seus sonhos de descanso de tela, o mundo deles havia sido colonizado e seus camaradas seriam marcados como criminosos por leis como o Computer Fraud and Abuse Act promulgado dez anos antes. Exeções famosas à parte, como o fundador do Pirate Bay,Peter Sunde , a primeira geração de hackers falhou, pois falharam em perceber e dar importância aos princípios anarquistas sustentando as mesmas tecnologias que eles errôneamente consideraram como inerentemente liberatórias.

Se eles tivessem trazido consigo um olhar mais explicitamente anarquista, teriam reconhecido que nem anarquia nem liberação são estados que podem ser descritos por suas máquinas do estado, mas que esses são processos constantes em que os indivíduos devem repetidamente agirem para reafirmar sua resitência contra a formação de um Archos.

Hoje isso significa que Anarquistas politicamente conscientes devem tomar a responsabilidade pela operação e administração das redes interconectadas de comunicação, se não mesmo, a Internet com I maiúsculo, para nos certificarmos que o fascismo será constantemente combatido e freado. Isso vai além de simplesmente não dar plataforma para fascistas e criar o código do próximo app de rede social ou mensageiro criptografado que vai virar hype. Isso não é o suficiente. Não passa nem perto de ser o suficiente.

Ao invés disso, nós anarquistas devemos nos tornar de fisicamente correr cabos de um bairro para outro. Devemos nós mesmos aprender a administrar funções vitais da internet como o Domain Name Syste, independente dos nossos provedores comerciais. Nós devemos aprender a criar uma infraestrutura, não necessariamente maior, mas paralela aos imensos datacenters e instalalos fisicamente nas comunidades que dependem deles, ao invés de deixa-los a um meio globo de distância, exatamente pela mesma razão nós devemnos abolir as delegacias de polícia cujas patrulhas são conduzidas por equipes que nem vivem na vizinhança pela qual são responsáveis por policiar.

Isso é uma enorme quantia de trabalho, mas não tanto parece a primeira vista. E o melhor de tudo, os recursos que são necessários em termos de dinheiro e equiopamento são mínimos e cada dia mais acessíveis. Também não há necessidade de escrever novos códigos ou criar novos apps para fazer isso acontecer. Nós já temos todos os materiais básicos que precisamos para o trabalho. A única coisa que nos falta é um amplo compromisso dos próprios anarquistas.

Na cidade de Nova York, vários coletivos Anarquistas e anarco-autonomistas tem lentamente convergido para fornecer a apoio na insfraestrutura digital e tecnológica para organizações anti-fascistas, anti-racistas, e anti-capitalistas de maneira reproduzível. Esses serviços vão desde treinamento em computação para ativistas e grupos de advocacia a assistência direta com componentes digitais para esforços de advocacia, e quando solicitado, até mesmo audições privadas quanto a segurança de algum aliado.

Alguns grupos como Anarcho-Tech NYC, são totalmente mantidos por trabalho voluntário operando sem nenhuma licença ou reconhecimento legal e uma caixa intencionalmeente o mais perto possível do zero.

Outros, como Tech Learning Collective, dão treinamentos técnicos livres, de contribuição voluntária, e de baixo custo para comunidades pouco assistidas e organizações que lutam pela justiça social, em um esforço de ajudar a financiar projetos radicias de bem estar social enquanto simultâneamente ajudam a melhorar as habilidades de estudantes politicamente motivados e tecnologicamente curiosos. O Tech Learning Collective é uma escola fundada e mantida exclusivamente por tecnologistas radicais, mulheres e queers, baseada na mentoria, e com foco na segurança, oferece aulas virtais (remotas/online) de computação em tópicos que vão desde o uso básico de computadores até as mesmas técnicas ofensivas de raqueamento utilizadas por agências nacionais de inteligência e agentes militares.

Junto de grupos focados em tecnologia como Shift-CTRL Space que conecta militantes a recursos tecnológicos livres, essa “coalizão arco-íris digital” com foco em assuntos como TI, infraestrutura de telecomunicações e iniciativas educacionais vem demonstrando como ter um grande impacto em organizações antifascistas no século 21.

Como anarquistas, nós gostamos de dizer que outro mundo é possível. A verdade é que, outro mundo está aqui todo esse tempo. Está na palma da nossa mão toda vez que lemos uma mensagem de texto de uma de nossas amigas. Tudo que precisamos fazer é aprender ccomo isso de fato funciona.

Apontamentos sobre o Uso de Tecnologias nos Protestos de Hong Kong

Esse texto é uma tradução-adaptação , o original pode ser encontrado aqui.

Consideramos esse texto, por si só, muito interessante para uma breve análise das táticas empregadas na revolta de Hong Kong em 2019, unos oferece uma visão bastante nítida dos potenciais insurrecionais que o uso criativo e difuso de tecnologias cotidianas nos oferecem.

Importante ressaltar, o texto data de 2019, de lá pra cá muita coisa mudou no contexto da guerra social local, e Hong Kong parece uma vez mais, pacificada sob as botas do regime chinês. Enquanto nossoscamaradas de lá aguardam o momento de se rebelaram novamente, nós nos reunimos pra aprender e discutir seus feitos.

Se te instigar a curiosidade sobre esses eventos, te recomendo fortemente conferir o documentário em três partes que o Popular Front fez, sobre esses mesmo conflitos.

Morte ao Estado e que Viva a Anarquia.

Boa leitura.

Os protestos pró democracia em Hong Kong estão entrando em sua décima quarta semana. Mais de mil pessoas já foram presas, e muitos ativistas já foram seriamente feridos pela polícia. A festividade de aniversário de setenta anos da China está chegando em primeiro de Outubro, e o quinto aniversário dos protestos de Occupy Central [1] serão em 29 de Setembro, então o clima é de alta tensão.

Irei explicar brevemente o contexto legal dos protestos, e as ameaças que os manifestantes enfrentam, antes de explicar as maneira que eles tem utilizado redes sociais e aplicativos de mensagem para coordenar protestos.

Contexto Legal

Hong Kong é uma Região Administrativa Especial da China, com altos níveis de autonomia formal . O território foi cedido à China em 1997 sob o modelo “Um País, Dois Sistemas”, criado para preservar seu sistema legal e econômico. Pelo tratado, Hong Kong supostamente desfruta desse status especial até 2047.

Os protestos atuais são uma série de confrontos entre manifestantes e as autoridades em Hong Kong, com pressão de Beijing nos bastidores, mas sem interferência aberta. De um lado do conflito está o Chefe do Executivo e os 30.000 membros da polícia de Hong Kong. Do outro, lado, temos essencialmente, todo o resto da população. Nos protestos de 9 e 16 de Junho foram estimados, respectivamente 1 e 2 milhões de participantes nas manifestações, em uma cidade de 7 milhões. Até agora 1.000 pessoas foram presas e manifestantes tiveram ferimentos graves, alguns sofridos após as pessoas serem levadas sob custódia da polícia.

Apesar de existirem bolsões de Hong Kong que apoiam o continente (como a vizinhança de North Point, que tem laços com a província de Fujian), os protestos gozam de amplo apoio social, em parte por conta da violência policial ter escandalizado uma sociedade onde violência é algo raro.

É compreendido que a polícia de Hong Kong é uma autoridade executiva que responde as diretivas de Beijing, mas o sistema de corte de Hing Kong é genuinamente independente.

Hong Kong está fora do Great Firewall[2], com acesso irrestrito a internet. Isso não é apenas uma escolha política, mas uma realidade física; A infraestrutura não está posta de um modo que facilite a expansão rápida dos controles de internet da China continental sobre Hong Kong.

É importante compreender as restrições da China. Hong Kong é a rota da China para o sistema financeiro global, e esse status depende da continuação da independência o sistema legal de Hong Kong. Tanto investimento financeiro estrangeiro, quanto o sistema bancário internacional dependem de Hong Kong por conta de suas fortes garantias oferecidas por suas cortes. Qualquer violação dessas leis, pela China poderiam ter repercussões catastróficas caso espantassem as empresas internacionais.

O status especial de rota financeira protege Hong Kong. A corrupção nos níveis mais altos do Partido Comunista Chinês oferecem um nível adicional de proteção. Oficiais chineses contam com o funcionamento de Hong Kong para várias formas de lavagem de dinheiro. Não existe maneira fácil de comprar uma vila italiana com renminbi[3] que não passe por Hong Kong.

Beijing tem uma combinação de incentivos “macroeconômicos” e “microeconômicos” para deixar Hong Kong sem interferência. Intervenção direta iria ferir a economia chinesa, e o fim da rota financeira de Hong Kong afetaria pessoal e drasticamente grande parte das elites.

Isso torna boa parte das estratégias chinesas de como lidar com dissidências internas, impossíveis de serem usadas em Hong Kong. Em especial, Blackout de Internet, prisões arbitrárias, extradição para o continente ou o uso direto do Peoples Armed Police, o PLA, seriam todos métodos inaceitáveis para o interesse financeiros internacionais.

O problema com essa proteção é que ela é frágil. Uma vez que a China cruze a linha e espante o capital internacional (impondo restrições de internet, ou atropelando as cortes locais), possivelmente não haverá mais defesas contra outras formas de interferência direta.

Ameaças

A Lei Básica de Hong Kong garante aos seus cidadãos a liberdade de expressão e de imprensa. O ponto fraco é a liberdade de reunião. Se a polícia declarar uma reunião de três ou mais pessoas como ilegal, a pena pode ser de até dez anos de cadeia. Os organizadores dos protestos de 2014 responderam ou estão respondendo à essas penas.

A China também tem posto uma enorme pressão sobre empresas de Hong Kong para que demitam trabalhadores que participam dos protestos, mais publicamente a empresa aérea, Cathay Pacific. Pressão semelhante tem sido observada sobre as escolas, agora que o ano letivo está em andamento.

Então, as maiores ameaças para os manifestantes são serem presos por fazerem assembléias públicas, ou serem identificados individualmente, por fotografias ou outros meios. Além das complicações legais, Hong Kong tem uma cultura de doxxing, que não carrega o mesmo estigma que nos EUA. Essa é uma ameaça, tanto para os manifestantes quanto para a polícia.

Outra ameaça que os manifestantes enfrentam são os ataques físicos, tanto por parte da polícia durante os protestos, quanto por parte dos bandidos afiliados à China continental, que possuem permissão para atacar impunemente. Figuras proeminentes da oposição já foram atacadas em plena luz do dia[4].

E por fim, visitantes e moradores de Hong Kong estão enfrentando repressão na fronteira de Shenzhen, onde guardas revistam aparelhos eletrônicos na busca de qualquer conteúdo relacionado aos protestos. Ao menos uma universidade de medicina retirou seus estudantes dos hospitais do continente para evitar submetê-los a essa intimidação.

Seja lá por qual motivo for, as autoridades de Hong Kong tem se mostrado relutantes em fazer prisões em massa. Eles podem não possuir a capacidade física pra isso, ou ter outras outros razões. A estratégia parece ser a prisão de alguns, para desmotivar os demais. Do lado dos manifestantes, o objetivo é não ser um dos 20 à 150 detidos à cada evento.

A ameaça da vigilância em massa é parte do cenário cataclísmico onde a China está enviando pessoas para campos de reeducação semelhantes aos dos uigure. O que não parece afetar as decisões cotidianas das pessoas, mais do que a ameaça de ser pessoalmente identificado.

Aqui, o sistema de corte de Hong Kong também oferece alguma proteção, a China não pode simplesmente pegar uma quantidade massiva de dados de torres de celular e apresentar nos julgamentos; É necessário que haja algum tipo de construção paralela.

Dito isso, a polícia de Hong Kong pode obter amplos dados de vigilância sem mandato, e a falta de medo da vigilância de massa pode ser mais psicológica, ligadas a falta de prisões em massa. As pessoas estão preocupadas em serem identificadas individualmente, e não que em algum momento do futuro as autoridades possam identificar centenas de manifestantes.

Por isso, manifestantes se concentram nas ameaças que podem enfrentar; Usam guarda chuvas e máscaras para esconder seus rostos, alguns usam cartões MTR descartáveis ao invés do Octopus card [5] que é ligado a sua identidade (já que a polícia pode escanear o cartão para saber que trajetos fizeram).

Quase todos trazem telefones celulares para os protestos, destes, poucos são do tipo descartável

Uso de Tecnologia

É importante enfatizar que os manifestantes de Hong Kong são pessoas jovens, improvisando dentro de um cenário bastante estressante. Eles não são ubernerds como vem sendo retratados em alguns canais da mídia ocidental, mas sim, centenas de milhares de pessoas comuns, preocupadas e corajosas, que vem desafiando a China. Retrata-los como especialmente competentes é um desserviço e desconsidera a coragem que demonstram.

Como lideranças se mostraram uma vulnerabilidade em 2014, os manifestantes de 2019 adotaram uma abordagem descentralizada. Não existem lideranças formais, e a coesão se dá à partir de redes sociais e laços de relacionamentos pessoais. O resultado é processo decisório do tipo “protesto twitch play” (aqueles que são velhos de mais para entender essa referência, podem pensar no processo, como uma decisão por tábua Ouija).

Os manifestantes fazem uso constante de duas ferramentas de software: LIHKG (Li-dan), um fórum de mensagens semelhante ao Reddit, e o aplicativo de mensagens Telegram.

LIHKG

LIHKG é um local para proposição de novas ideias e discussão. Existem duas categorias de usuários, destacados visualmente, baseados em se entraram no site ante ou depois da data limite do começo das manifestações. O site requer um email ISP para ser acessado. As duas medidas existem para impedir trolls.

O site é administrado de forma anônima.

As conversas acontecem em cantonês e ao menos uma vez os usuários adotaram uma forma de escrita de cantonês que é incompreensível para falantes do mandarim, como modo de defesa contra os trolls. Os trolls foram de certa forma, impedidos pelo chauvinismo da China continental que vê o cantonês como um dialeto. Esse chauvinismo impediu a China de mobilizar uma comunidade de falantes de cantonês pró China continental, capaz de influenciar ou desmobilizar as discussões públicas do fórum.

Em 31 de Agosto, LIHKG foi sujeito a um ataque de DDOS que derrubou o site. O fórum mudou seu domínio para Cloudflare e se mantém ativo até o momento.

Telegram

Telegram é o mensageiro favorito entre manifestantes. É usado para mensagem um-pra-um entre indivíduos, entre pequenos grupos de pessoas para coordenação, e entre grupos muito grandes para amplificar e disseminar informações. A ferramente de enquete também é uma maneira de firmar consenso no processo de tomadas de decisão em coletivo.

Muitas ferramentas do Telegram o tornam atrativo para os manifestantes.

· Mensagens que Desaparecem — Se a polícia te forçar a destravar o telefone, você não entrega seus aliados.

· Grupos com um número muito grande de membros (dezenas de centenas ou mesmo centena de milhares). O que permite uma rápida difusão de notícias.

· Enquetes. Já que os protestos são descentralizados, alguns mecanismos de tomada de decisão são necessários. Na prática, enquetes são usadas para confirmar decisões, onde o consenso parece nítido.

· Interface amigável para os usuários.

Em agosto foi revelado, após um cyber ataque, que era possível identificar a quais grupos os usuários do Telegram pertenciam.

O Telegram respondeu com uma atualização que permite aos usuários esconder seus números de telefone. O evento parece não ter afetado o uso do Telegram com o público, o que ajuda a comprovar a tese de que os manifestantes estão mais preocupados em serem identificados pessoalmente do que com a vigilância em massa.

Exemplo — O Modo Hong Kong

Um exemplo pode nos ajudar a demonstrar como essas tecnologias são usadas na prática.

Em 19 de Agosto, alguém postou no fórum LIHKG, dando a ideia de formar uma corrente humana em Hong Kong, no aniversário de 30 anos do protesto de Baltic Way, que aconteceu na antiga União Sovietica. Rapidamente, surgiram grupos organizados no Telegram. Eles apresentavam mapas e a logística de quantas pessoas seriam necessárias, e onde.

Logo, grupos de Telegram foram formados para cada setor da rota, que seria paralela ao sistema de metrô.

No dia dos protestos, voluntários monitoraram m tempo real os mapas e enquetes que informavam para onde as pessoas estavam se dirigindo e quais estações MTR precisavam de mais participantes. Voluntários nas saídas dos metrôs ajudaram na formação, se certificando que quando o protesto começasse às 8 PM, todos estariam em suas posições e não haveriam espaços vagos.

Um grupo no Telegram organizou a ação final da noite, com cada manifestante tapando um de seus olhos e cantando “give back the eye” às 9 PM (uma referência ao fato que um dos partcipantes que cegado por uma munição menos letal, disparada por um policial).

Essa grande ação, que seria impressionante em qualquer contexto organizativo, foi feita em quatro dias por voluntários que eram completos estranhos uns aos outros. Imagens dos manifestantes foram então usadas em artes de fãs, posters, materiais de publicidade, e também compartilhadas via KIHKG e Telegram.

HKmap.live

HKmap.live é um mapa mantido por trabalho voluntário, que acompanha protestos em tempo real, incluindo marcadores para presença policial, unidades de elite da polícia, gás lacrimogênio, e alertas sobre a presença da polícia em vias públicas. As informações no mapa são alimentadas por dados através do Telegram. Entrou no ar em Agosto.

Outros Serviços

Manifestantes em Hong Kong compreenderam que o Twitter tem um impacto desproporcional na cobertura da mídia, e que muitos jornalistas ocidentais utilizam o site. Nas últimas semanas tem acontecido um esforço de aumentar a presença de Hong Kong no Twitter, mas relatos mostram que as pessoas tem tido dificuldade de se adaptar ao site.

Alguns hong konguers usam Whatsapp, mas a limitação de tamanho dos grupos o torna menos atrativo que o Telegram. A relativa preferência pelo Telegram também tenha ha ver com desconfiança com relação as políticas de privacidade do Facebook.

O Facebook possui uma relação financeira com Xinhua, a agência de notícias do estado chinês. Xinhua se referiu aos manifestantes como “baratas” em um infame post de facebook (deletado).

Enquanto o Twitter impediu Xinhua de comprar espaço publicitário, Facebook e YouTube continuam vendendo espaço para a estatal mesmo depois de terem dito que iriam dar menos prioridade para esse tipo de conteúdo em seu algoritmo. Na prática, significa que Facebook e YouTube estão tornando o conteúdo da Xinhua menos popular, para que a Xinhua pague mais.

Esse relacionamento não contribui para criar um público cativo do Facebook e WhatsApp entre hong konguers.

[1] Occupy Central; O equivalente ao Occupy Wallstreet e toda aquela onda de eventos que se desenrolaram pelo mundo por 2013

[2] Great Firewall;

[3] Renminbi; Moeda oficial do governo chinês

[4] Alguns casos de violência contra opositores do governo chinês.

[5] Octopus Card e MTR, são cartões pré-pagos que podem ser utilizados para pagar por transporte e compras em pequenos estabelecimentos, a vantagem do Octopus, é que ele não é ligado aos documentos de identidade do usuário

Borboletas, Duques Mortos, a Roda Cigana e o Ministério da Estranheza

[tradução do capítulo 08 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

Anarquistas, no mínimo desde os dias de Kropotkin, têm conscientemente se distanciado da ideia de caos. Lendas foram sussurradas, que um misterioso A dentro de um círculo representa a ordem dentro do caos. Nos últimos anos, praticamente todo escrito anarquista “sério” tentou distanciar o anarquismo do caos. Ainda assim, para a maioria das pessoas comuns, caos e anarquia estarão ligados para sempre. A conexão entre caos e anarquismo deveria ser repensada e acolhida, invés de ser minimizada e reprimida. Caos é o pesadelo dos governantes, estados, e capitalistas. Por essa e outras razões o caos é um aliado natural em nossas lutas. Nós não deveríamos polir a imagem do anarquismo apagando o caos. Invés disso, devíamos relembrar que o caos não é apenas incendiar ruínas mas também asas de borboletas

“Predição é poder.”

— Auguste Comte, pai da sociologia

Desde o Iluminismo, políticos têm tentado usar princípios científicos na política e economia para controlar a população. A arrogância de sociólogos, economistas, e outros ditos especialistas é evidente na crença que o desejo humano pode ser quantificado, organizado, e assim controlado. As tentativas de prever e controlar todas as possibilidades há muito são o sonho molhado de totalitários e executivos da publicidade ao redor do mundo. Desde Marx que se considerava um “cientista do comportamento das massas”, revolucionários vanguardistas de todo tipo tem acreditado que eles descobriram a equação perfeita para a revolução: uma abordagem matemática para a mudança social. Tanto políticos quanto revolucionários profissionais lutam para se tornarem especialistas absolutos na administração da máquina política; os políticos de verdade casualmente são melhores nisso que seus primos, os ativistas. Não é novidade que os sociólogos da revolução, universitários marxistas sinceros, e os anarco-literários são apaixonados por plataformas, políticas, história, e teorias áridas. Infelizmente para eles, e felizmente para nós, o caos se recusa a respeitar quaisquer regras.


Um Pouqinho Rende Muito

O bater de asas de uma única borboleta hoje, produz uma pequena mudança no estado da atmosfera. Ao longo de um período de tempo, o que a atmosfera faz diverge do que ela teria feito. Então em um mês, um tornado que teria devastado a costa da Indonésia não acontece. Ou talvez, um que não iria acontecer, de fato acontece.”

— Edward Lorenz, meteorologista, 1963

A menor mudança nas condições iniciais de um sistema podem mudar drasticamente seu comportamento a longo prazo. Esse fenômeno, comum à teoria do caos, é conhecido como “sensibilidade às condições iniciais”. Uma pequena diferença em uma medida pode ser considerado ruído experimental, estática de fundo, ou uma pequena imprecisão. Mudanças tão facilmente ignoráveis podem crescer exponencialmente e se acumular de formas inesperadas para criar resultados igualmente inesperados maiores do que qualquer um poderia imaginar.

Esses glitches e fantasmas na máquina são aleatórios demais para serem previstos por qualquer supercomputador governamental. Portanto, anarquistas podem tomar vantagem de estranhos acontecimentos, usando o caos como uma arma secreta contra regimes de controle. Quem sabe se uma mulher se recusando a dar seu lugar no ônibus vai dar origem ao movimento pelos Direitos Civis, ou se um um pequeno mas furioso grupo de adolescentes reunidos na barraquinha de cachorro quente local, em algum momento vão dar início a uma insurreição? O Caos é capaz de virar o jogo mesmo contra o mais estabelecido dinossauro. Em situações fluidas tais como manifestações, ações aparentemente sem consequências podem mudar o tom ou a direção de todo o “sistema”, levando ao caos no melhor sentido possível.

Os políticos do mundo dificilmente anteviram o assassinato do Arquiduque Ferdinando no interior do Império Austro-húngaro levaria ao rompimento de três dos maiores impérios do mundo em menos de uma década. Obviamente, as tensões políticas daqueles dias existiam independentes do duque morto, mas seu assassinato acendeu um pavio cuja explosão destruiu as realidade políticas e econômica dos impérios. Da mesma maneira, uma borboleta batendo suas asas em uma oficina na área rural de West Virgina tem potencial para criar um furacão; ou uma revolução na Argentina.

Surfando as Ondas Fractais da Revolução


Caos é na verdade, mais real que um mundo facilmente dividido entre objetos distintos e equações lineares. Esses objetos fantásticos são perfeitos demais para serem reais em qualquer lugar que não livros de matemática. O mundo real é bagunçado, animado, e sujeito a mudanças constantes além da compreensão de qualquer humano. Abstrações podem ser úteis às vezes, quando se planeja confrontos com a polícia, quando rascunhamos planos para o ano seguinte, e ao lermos mapas em cidades onde nunca pisamos. Ainda assim, a maioria das abstrações fazem um desserviço ao mundo real por negligenciarem os pequenos detalhes. O mundo é caótico e cada vez que alguém acredita que pode controlá-lo, o mundo encontra uma maneira nova de lhe passar uma rasteira.

A teoria fractal demonstrou que o mundo real é menos “real” do que imaginamos a princípio. Em um muito discutido ensaio sobre a costa da Inglaterra, foi demonstrado que a forma e tamanho da unidade de medida afetava dramaticamente o resultado final. Se usarmos uma régua rígida de um metro, vamos medir uma costa mais curta do que se usarmos uma fita milimétrica curva. A costa da Inglaterra, goste ou não, é infinitamente flexível. Mesmo que você tivesse um mapa de escala um para um de uma cidade, ele nunca poderia representar a totalidade da cidade. Existem muitas “cidades” em qualquer cidade e nossa visão disso depende de como observamos nosso entorno, e o que escolhemos dar ênfase. A vantagem dessas realidades borgesianas é que anarquistas têm acesso a múltiplas lentes para usar e entender o mundo. No campo político, as autoridades concordam em se limitarem para uma única representação “verdadeira”, enquanto nós mantemos nossos olhos abertos para possibilidades caóticas. Anarquistas podem usar diferentes perspectivas e escalas para determinar quais projetos valem o esforço. Na medida linear e grandiosa da régua da Revolução Global, os detalhes saem de foco, e muitos projetos essenciais parecem menos importantes. Nós podemos utilizar essa flexibilidade em nossas réguas para nossa vantagem. Dever e Prazer são apenas parte do alcance de nossas motivações. Libertação pessoal, guerra de classes, ambientalismo global, e lutas por autonomias políticas são todas diferentes fórmulas de medir o valor de uma ação ou projeto. Quando aplicados a uma situação, cada um terá um resultado diferente.


A Sorte é Amiga dos Rebeldes

Nós devemos nos tornarmos aliados da sorte se quisermos superar as chances que estão contra nossas empreitadas. Nós não podemos entrar no cassino da revolução política e não perceber que a Casa (o status quo) está contra nós. Nós podemos buscar a sorte onde outros a perderam. Sorte é a combinação de coincidências espontâneas que nós podemos reconhecer e usar em nossa vantagem. Esses eventos não podem ser planejados ou fabricados. Por sorte nossa, esse mundo complexo está transbordando de coincidências potencialmente críticas que estão disponíveis para qualquer rebelde intrépido o bastante para buscá-la. Isso significa tornar nossos planos flexíveis e sermos capazes de lidar com essas possibilidades a qualquer momento. Encontrar uma lixeira esquecida fora da rota de uma manifestação pode facilmente ser a diferença entre conseguir atravessar uma barreira da polícia ou ser bloqueado, especialmente se a lixeira for usada como um aríete!

Como podemos usar o caos em nossa vantagem em nossas resistências diárias? Quando situações são imprevisíveis e os resultados são imprevisíveis, como podemos ter esperança de usar um amigo tão inconstante como aliado? Essas são perguntas para cúpulas anarquistas e think-tanks ao redor do mundo. Nós podemos aprender com toda experiência e não nos tornarmos tão arrogantes a ponto de pré planejar cada evento com antecedência. Sistemas hierárquicos rígidos temem o caos, rejeitam os fractais, e rejeitam a sorte. A arrogância do dinossauro é uma grande vantagem para a nossa resistência. Resistência fractal não pode ser adequadamente contida por estratégias pré programadas de gerenciamento e estratégias de controle de multidões. É importante compreender que nós não somos os primeiros a usar o caos como tática. O caos está integrado a várias culturas ancestrais e outras não tão ancestrais, dos Hopi aos mateiros San. Inúmeras comunidades não só encontraram conforto com o inerente caos do mundo como encontraram formas efetivas de usá-lo.

Culturas de Caos

Os nômades Rom; também conhecidos como Ciganos, têm sido um “problema” para antropologistas por mais de um século. Relativamente pequeno em números e sem nada que se pareça com um exército, ou poder político, eles têm resistido a assimilação por mais de 600 anos. Os ciganos possuem um caótico e fascinante sistema de apoio mútuo baseado no mito da “Roda Cigana”. A ajuda material é livremente oferecida para outros viajantes com a ideia que vai retornar para o indivíduo em algum momento no futuro, quando for necessária. Apoio mútuo é dado livremente aos que pedem, somente na estrada (tradicionalmente um espaço liminar). Essa forma de apoio mútuo depende de uma complexa e sempre mutante constelação de sinais que acontecem naturalmente, que pessoas de fora consideram superstições bobas. Como esses presságios aparecem aleatoriamente, nenhum indivíduo consegue os manipular conscientemente. Observadores externos apenas começaram a ver isso como uma estratégia fundamental que as pessoas Rom têm usado contra sociedades que desejam assimilá-los ou destruí-los. Essa abordagem não-linear à princípio pode parecer aleatória demais para funcionar para toda uma sociedade, mas ela tem se mantido como um dos pilares da cultura Rom. Nossas próprias interações e generosidade com estranhos hoje comumente nos trazem benefícios inesperados maiores que qualquer medida quantitativa, e sempre na hora certa.

Outro exemplo, de uma comunidade bem maior em uma outra época: por mais de mil anos o império chinês consultava um “Ministério da Estranheza” para conselhos quando os planos imperiais falhavam ou produziam resultados inesperados. Tradicionalmente o Ministério da Estranheza era mantido ignorante sobre os planos originais. O ministério então consultava o I-Ching (aleatoriamente jogando gravetos de mil-folhas) para criar novos planos. Essa prática efetiva foi interrompida quando o conquistador orientado pela ciência Genghis Khan tomou o poder. Ironicamente Kublai Khan reintroduziu e expandiu o Ministério da Estranheza. Invés de servilmente replicar modelos e projetos que não dão resultados, nós devemos ter medo de tentar esquemas absurdos e ainda não testados.

No ramo especificamente revolucionário, o caos é uma ferramenta que pode derrubar mesmo o mais poderoso dos gigantes. Sabotadores sabem que os itens mais simples (por ex: um tamanco de madeira) podem ser usados para causar disrupção no mais eficiente e complicado dos sistemas. Na verdade, quanto mais complexo um sistema é, mais fácil é sabotá-lo. O equivalente econômico da vulnerabilidade do Estado é que conforme Capitalistas se tornam mais e mais dependentes de tecnologias e burocracias, eles aumentam sua vulnerabilidade a formas caóticas de resistência como o hacking.

Vamos reconhecer o caos como uma parte importante da mudança política e social. Nós podemos integrá-lo como um fator em nossas vidas cotidianas. Caos é a carta selvagem que permite que uma pequena comunidade como a nossa tenha um impacto muito maior do que o esperado por especialistas. De fato, grupos maiores tendem a ter mais inércia e raramente tomam vantagem das marés do mundo. Desde que não estejamos amarrados em táticas rígidas e modelos frágeis, seremos capazes de nos adaptar em ambientes em constante mudança. Com uma dose saudável de desconfiança dos vanguardistas e especialistas que têm a visão, plataforma ou política certa para a mudança, nós sempre podemos manter nossos olhos abertos para as inesperadas possibilidades do caos.