Borboletas, Duques Mortos, a Roda Cigana e o Ministério da Estranheza

[tradução do capítulo 08 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

Anarquistas, no mínimo desde os dias de Kropotkin, têm conscientemente se distanciado da ideia de caos. Lendas foram sussurradas, que um misterioso A dentro de um círculo representa a ordem dentro do caos. Nos últimos anos, praticamente todo escrito anarquista “sério” tentou distanciar o anarquismo do caos. Ainda assim, para a maioria das pessoas comuns, caos e anarquia estarão ligados para sempre. A conexão entre caos e anarquismo deveria ser repensada e acolhida, invés de ser minimizada e reprimida. Caos é o pesadelo dos governantes, estados, e capitalistas. Por essa e outras razões o caos é um aliado natural em nossas lutas. Nós não deveríamos polir a imagem do anarquismo apagando o caos. Invés disso, devíamos relembrar que o caos não é apenas incendiar ruínas mas também asas de borboletas

“Predição é poder.”

— Auguste Comte, pai da sociologia

Desde o Iluminismo, políticos têm tentado usar princípios científicos na política e economia para controlar a população. A arrogância de sociólogos, economistas, e outros ditos especialistas é evidente na crença que o desejo humano pode ser quantificado, organizado, e assim controlado. As tentativas de prever e controlar todas as possibilidades há muito são o sonho molhado de totalitários e executivos da publicidade ao redor do mundo. Desde Marx que se considerava um “cientista do comportamento das massas”, revolucionários vanguardistas de todo tipo tem acreditado que eles descobriram a equação perfeita para a revolução: uma abordagem matemática para a mudança social. Tanto políticos quanto revolucionários profissionais lutam para se tornarem especialistas absolutos na administração da máquina política; os políticos de verdade casualmente são melhores nisso que seus primos, os ativistas. Não é novidade que os sociólogos da revolução, universitários marxistas sinceros, e os anarco-literários são apaixonados por plataformas, políticas, história, e teorias áridas. Infelizmente para eles, e felizmente para nós, o caos se recusa a respeitar quaisquer regras.


Um Pouqinho Rende Muito

O bater de asas de uma única borboleta hoje, produz uma pequena mudança no estado da atmosfera. Ao longo de um período de tempo, o que a atmosfera faz diverge do que ela teria feito. Então em um mês, um tornado que teria devastado a costa da Indonésia não acontece. Ou talvez, um que não iria acontecer, de fato acontece.”

— Edward Lorenz, meteorologista, 1963

A menor mudança nas condições iniciais de um sistema podem mudar drasticamente seu comportamento a longo prazo. Esse fenômeno, comum à teoria do caos, é conhecido como “sensibilidade às condições iniciais”. Uma pequena diferença em uma medida pode ser considerado ruído experimental, estática de fundo, ou uma pequena imprecisão. Mudanças tão facilmente ignoráveis podem crescer exponencialmente e se acumular de formas inesperadas para criar resultados igualmente inesperados maiores do que qualquer um poderia imaginar.

Esses glitches e fantasmas na máquina são aleatórios demais para serem previstos por qualquer supercomputador governamental. Portanto, anarquistas podem tomar vantagem de estranhos acontecimentos, usando o caos como uma arma secreta contra regimes de controle. Quem sabe se uma mulher se recusando a dar seu lugar no ônibus vai dar origem ao movimento pelos Direitos Civis, ou se um um pequeno mas furioso grupo de adolescentes reunidos na barraquinha de cachorro quente local, em algum momento vão dar início a uma insurreição? O Caos é capaz de virar o jogo mesmo contra o mais estabelecido dinossauro. Em situações fluidas tais como manifestações, ações aparentemente sem consequências podem mudar o tom ou a direção de todo o “sistema”, levando ao caos no melhor sentido possível.

Os políticos do mundo dificilmente anteviram o assassinato do Arquiduque Ferdinando no interior do Império Austro-húngaro levaria ao rompimento de três dos maiores impérios do mundo em menos de uma década. Obviamente, as tensões políticas daqueles dias existiam independentes do duque morto, mas seu assassinato acendeu um pavio cuja explosão destruiu as realidade políticas e econômica dos impérios. Da mesma maneira, uma borboleta batendo suas asas em uma oficina na área rural de West Virgina tem potencial para criar um furacão; ou uma revolução na Argentina.

Surfando as Ondas Fractais da Revolução


Caos é na verdade, mais real que um mundo facilmente dividido entre objetos distintos e equações lineares. Esses objetos fantásticos são perfeitos demais para serem reais em qualquer lugar que não livros de matemática. O mundo real é bagunçado, animado, e sujeito a mudanças constantes além da compreensão de qualquer humano. Abstrações podem ser úteis às vezes, quando se planeja confrontos com a polícia, quando rascunhamos planos para o ano seguinte, e ao lermos mapas em cidades onde nunca pisamos. Ainda assim, a maioria das abstrações fazem um desserviço ao mundo real por negligenciarem os pequenos detalhes. O mundo é caótico e cada vez que alguém acredita que pode controlá-lo, o mundo encontra uma maneira nova de lhe passar uma rasteira.

A teoria fractal demonstrou que o mundo real é menos “real” do que imaginamos a princípio. Em um muito discutido ensaio sobre a costa da Inglaterra, foi demonstrado que a forma e tamanho da unidade de medida afetava dramaticamente o resultado final. Se usarmos uma régua rígida de um metro, vamos medir uma costa mais curta do que se usarmos uma fita milimétrica curva. A costa da Inglaterra, goste ou não, é infinitamente flexível. Mesmo que você tivesse um mapa de escala um para um de uma cidade, ele nunca poderia representar a totalidade da cidade. Existem muitas “cidades” em qualquer cidade e nossa visão disso depende de como observamos nosso entorno, e o que escolhemos dar ênfase. A vantagem dessas realidades borgesianas é que anarquistas têm acesso a múltiplas lentes para usar e entender o mundo. No campo político, as autoridades concordam em se limitarem para uma única representação “verdadeira”, enquanto nós mantemos nossos olhos abertos para possibilidades caóticas. Anarquistas podem usar diferentes perspectivas e escalas para determinar quais projetos valem o esforço. Na medida linear e grandiosa da régua da Revolução Global, os detalhes saem de foco, e muitos projetos essenciais parecem menos importantes. Nós podemos utilizar essa flexibilidade em nossas réguas para nossa vantagem. Dever e Prazer são apenas parte do alcance de nossas motivações. Libertação pessoal, guerra de classes, ambientalismo global, e lutas por autonomias políticas são todas diferentes fórmulas de medir o valor de uma ação ou projeto. Quando aplicados a uma situação, cada um terá um resultado diferente.


A Sorte é Amiga dos Rebeldes

Nós devemos nos tornarmos aliados da sorte se quisermos superar as chances que estão contra nossas empreitadas. Nós não podemos entrar no cassino da revolução política e não perceber que a Casa (o status quo) está contra nós. Nós podemos buscar a sorte onde outros a perderam. Sorte é a combinação de coincidências espontâneas que nós podemos reconhecer e usar em nossa vantagem. Esses eventos não podem ser planejados ou fabricados. Por sorte nossa, esse mundo complexo está transbordando de coincidências potencialmente críticas que estão disponíveis para qualquer rebelde intrépido o bastante para buscá-la. Isso significa tornar nossos planos flexíveis e sermos capazes de lidar com essas possibilidades a qualquer momento. Encontrar uma lixeira esquecida fora da rota de uma manifestação pode facilmente ser a diferença entre conseguir atravessar uma barreira da polícia ou ser bloqueado, especialmente se a lixeira for usada como um aríete!

Como podemos usar o caos em nossa vantagem em nossas resistências diárias? Quando situações são imprevisíveis e os resultados são imprevisíveis, como podemos ter esperança de usar um amigo tão inconstante como aliado? Essas são perguntas para cúpulas anarquistas e think-tanks ao redor do mundo. Nós podemos aprender com toda experiência e não nos tornarmos tão arrogantes a ponto de pré planejar cada evento com antecedência. Sistemas hierárquicos rígidos temem o caos, rejeitam os fractais, e rejeitam a sorte. A arrogância do dinossauro é uma grande vantagem para a nossa resistência. Resistência fractal não pode ser adequadamente contida por estratégias pré programadas de gerenciamento e estratégias de controle de multidões. É importante compreender que nós não somos os primeiros a usar o caos como tática. O caos está integrado a várias culturas ancestrais e outras não tão ancestrais, dos Hopi aos mateiros San. Inúmeras comunidades não só encontraram conforto com o inerente caos do mundo como encontraram formas efetivas de usá-lo.

Culturas de Caos

Os nômades Rom; também conhecidos como Ciganos, têm sido um “problema” para antropologistas por mais de um século. Relativamente pequeno em números e sem nada que se pareça com um exército, ou poder político, eles têm resistido a assimilação por mais de 600 anos. Os ciganos possuem um caótico e fascinante sistema de apoio mútuo baseado no mito da “Roda Cigana”. A ajuda material é livremente oferecida para outros viajantes com a ideia que vai retornar para o indivíduo em algum momento no futuro, quando for necessária. Apoio mútuo é dado livremente aos que pedem, somente na estrada (tradicionalmente um espaço liminar). Essa forma de apoio mútuo depende de uma complexa e sempre mutante constelação de sinais que acontecem naturalmente, que pessoas de fora consideram superstições bobas. Como esses presságios aparecem aleatoriamente, nenhum indivíduo consegue os manipular conscientemente. Observadores externos apenas começaram a ver isso como uma estratégia fundamental que as pessoas Rom têm usado contra sociedades que desejam assimilá-los ou destruí-los. Essa abordagem não-linear à princípio pode parecer aleatória demais para funcionar para toda uma sociedade, mas ela tem se mantido como um dos pilares da cultura Rom. Nossas próprias interações e generosidade com estranhos hoje comumente nos trazem benefícios inesperados maiores que qualquer medida quantitativa, e sempre na hora certa.

Outro exemplo, de uma comunidade bem maior em uma outra época: por mais de mil anos o império chinês consultava um “Ministério da Estranheza” para conselhos quando os planos imperiais falhavam ou produziam resultados inesperados. Tradicionalmente o Ministério da Estranheza era mantido ignorante sobre os planos originais. O ministério então consultava o I-Ching (aleatoriamente jogando gravetos de mil-folhas) para criar novos planos. Essa prática efetiva foi interrompida quando o conquistador orientado pela ciência Genghis Khan tomou o poder. Ironicamente Kublai Khan reintroduziu e expandiu o Ministério da Estranheza. Invés de servilmente replicar modelos e projetos que não dão resultados, nós devemos ter medo de tentar esquemas absurdos e ainda não testados.

No ramo especificamente revolucionário, o caos é uma ferramenta que pode derrubar mesmo o mais poderoso dos gigantes. Sabotadores sabem que os itens mais simples (por ex: um tamanco de madeira) podem ser usados para causar disrupção no mais eficiente e complicado dos sistemas. Na verdade, quanto mais complexo um sistema é, mais fácil é sabotá-lo. O equivalente econômico da vulnerabilidade do Estado é que conforme Capitalistas se tornam mais e mais dependentes de tecnologias e burocracias, eles aumentam sua vulnerabilidade a formas caóticas de resistência como o hacking.

Vamos reconhecer o caos como uma parte importante da mudança política e social. Nós podemos integrá-lo como um fator em nossas vidas cotidianas. Caos é a carta selvagem que permite que uma pequena comunidade como a nossa tenha um impacto muito maior do que o esperado por especialistas. De fato, grupos maiores tendem a ter mais inércia e raramente tomam vantagem das marés do mundo. Desde que não estejamos amarrados em táticas rígidas e modelos frágeis, seremos capazes de nos adaptar em ambientes em constante mudança. Com uma dose saudável de desconfiança dos vanguardistas e especialistas que têm a visão, plataforma ou política certa para a mudança, nós sempre podemos manter nossos olhos abertos para as inesperadas possibilidades do caos.