Além do dever e do prazer

[tradução do capítulo 07 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

Muitas amizades, coletivos e projetos afundaram desnecessariamente por desavenças sobre quais motivos nos levaram ao trabalho político. Essas divisões sobre nossas motivações fundamentais ameaçam mesmo os projetos ou coletivos mais idelogiamente “puros”. Esse obstáculo é insidioso e destrutivo que o sectarianismo do Green vs Red Scare ou a divisão anterior sobre Pacifismo vs Ação Direta. Eles também têm a infeliz habilidade de destruir amizades e deixar as pessoas se perguntando oquê deu errado. Apesar dos aspectos perenes e perniciosos das motivações destes conflitos, muito pouco tem sido escrito sobre a questão, de uma perpectiva anarquista.

Então, o que exatamente é esta ameça implícita ao trabalho coletivo ? A resposta pode ser encotrada nas motivações básicas que levam as pessoas a participarem de projetos. Como todos sabemos, muito do trabalho que fazemos não tem glamour e demanda muita energia e recursos. Não é raro que nossas ações falhem em alcançar nossas nobres expectativas e as vezes podem nos por grave perigo. Exaustão é um problema incrivelmente comum entre ativistas que puseram enormes quantidades de tempo e energia em seus projetos. Por conta dessas armadilhas, compreender as motivações das pessoas com as quais escolhemos trabalhar é tão importante quanto conhecer os posicionamentos políticos delas. Projetar suas próprias motivações sobre outros em um coletivo é uma receita certa para o desastre e o ressentimento.

Tradicionalemnte, existem duas vertentes principais de motivações (ou o que são compreendidas como motivações) nas políticas anarquistas. Dever e Prazer. Como qualquer dualidade, é fácil cair na armadilha de rótulos simplistas de preto no branco, ignorando os mais realistas nuances de cinza. Ao invés disso, pense nessas duas motivações como os pontos finais de um continuum, iluminando tudo entre os dois pontos.

Motivações não podem ser separadas das expectativas. Nos sentimos movidos a participar de projetos específicos por que nós temos expectativas positivas com relação ao nosso compromisso.

Expectativas que não são compartilhadas ou mesmo expressas coletivamente, podem acabar prejudicando a tomada de decisão sobre os rumos dos projetos. Como a satisfação das nossas expectativas é a principal forma que usamos para avaliar a eficácia de qualquer trabalho ou projeto, diferentes expectativas irão resultar em diferentes avaliações. Essas diferenças podem acabar com a habilidade de um coletivo de aprender com os erros do passado, uma vez que diferentes réguas estão sendo usadas. Assim como Dever e Prazer são motivações inerentemente diferentes, as expectativas também serão divergentes, o que por sua vez levam a evaliações conflitantes e análises do que seria o sucesso de um projeto ou coletivo.

Orientações motivacionais fundamentais, como Dever e Prazer, são mais persistentes que outras desavenças políticas porque muitas vezes são o resultado de traços básicos de personalidade. Motivações que residem no subconsciente ou no inconsciente são resistentes a maioria dos argumentos intelectuais, precedentes históricos, manipulações lógicas, e outros mecanismos conscientes. Em resumo, o que nos motiva a participar de certos projetos não pode ser explicado intelectualmente. Esses traços motivacionais conflitantes são potencialmente o elemento mais divisivo que encontramos em nosso trabalho coletivo diário. Para encontrar nosso caminho para fora desse campo minado da psicologia motivacional, nós precisamos entender como esses dois tipos polarizantes manifestam a si mesmos e buscar por novas formas de agir para ambos se complementarem.

Dever tem sido um motivo tradicional para projetos radicais; até recentemente, era a tendência predominante nas comunidades anarquistas. Isso sem dúvidas é por causa da nossa trágica história. As lutas anarquistas, em sua maioria, têm sido uma série de derrotas amargas, repressões e ostracismos. Então o que motivou camaradas a trabalharem de forma tão dura e altruísta em tantos períodos sombrios? A resposta parece ser um forte senso de Dever, baseado em um elevado senso de justiça, combinado com a crença em um mundo melhor. O modelo do Dever criou um culto de mártires, aqueles que deram tudo pela Causa. Os que trabalham dentro do modelo do Dever esperam que o trabalho seja duro e não reconhecido mas ainda sentem que ele deve ser feito. Anarquistas motivados pelo Dever não se preocupam se seu trabalho é prazeroso ou gratificante. Trabalho político dirigido pelo Dever tendem a ser caracterizados por reuniões sem fim, conflito, trabalhos de merda, e longas horas. O comprometimento da pessoa é medido por uma simples fórmula de hora-trabalho dedicadas a desagradáveis tarefas para as quais se voluntariou. Sacrifício se torna um ideal constante e reificado pelo anarquista motivado pelo Dever. Devido à quantidade de energia e trabalho insatisfatório, existe uma profunda preocupação sobre a longevidade dos projetos e avaliações sobre a sua eficácia na promoção da causa. O Dever tende a por ênfase em manter projetos. É comum que uma quantidade considerável de energia seja usada para manter projetos que talvez já tenham perdido sua função original ou que nunca acalçaram seu potencial.

As expectativas dos que trabalham num modelo de Dever tendem a ser externalizadas. A avaliação de sucesso e falha é baseada em fatores externos. Esses fatores normalmente incluem exposição midiática, impacto na comunidade, recrutamento, levantamento de verbas ou longevidade. Muitas dessas expectativas são facilmente quantificáveis e por isso análises empíricas são a principal forma de avaliação. Essa ênfase em quantidade e empiricismo leva a um desejo de aumentar os resultados quantificáveis. A abordagem do Dever é similar (em motivações, expactativas, e avaliações) a tendências históricas e atuais da Esquerda.

Prazer é uma força opositora relativamente nova no anarquismo, embora nós sempre tenhamos dado importância, ao menos da boca pra fora, ao Prazer no pensamento anarquista. Isso é exemplificado pela famosa frase de Emma Goldman “Se não posso dançar, não é minha revolução.” O mais novo modelo do Prazer no anarquismo vem das culturas punk, pagã e viajante do fim dos anos 1980 e é uma herança direta dos hippies e da Nova Esquerda dos anos 1960. Suas motivações são baseadas no princípio da satisfação. O Prazer busca transformar o trabalho político em brincadeira. Ele rejeita os clichês de sacrifício e martírio da velha Esquerda e os substitui com carnaval e metáforas festivas. O Prazer avalia o trabalho político não em horas de trabalho ou sacrifício, mas em quão excitante e empoderador um projeto pode vir a ser pessoal e coletivamente. Dada a necessidade do ativismo ser excitante e empoderador, projetos motivados pelo Prazer geralmente são temporários, se desfazendo logo depois da empolgação inicial diminuir. Eles geralmente não levam em consideração o impacto a longo prazo dos projetos em suas comunidades. Anarquistas motivados pelo Prazer também tendem a ser mais céticos com os projetos históricos que anarquistas movidos pelo Dever reverenciam.

Assim como o Dever, ativistas motivados pelo Prazer têm expectativas moldadas por suas motivações. As expectativas do trabalho tendem a ser internalizadas. É dada importância para experiências subjetivas e foco em mudanças qualitativas em opsição a medidas quantitativas. As expectativas geralmente incuem diversão, capacitação dos participantes, conscientização, empolgação, criatividade, e novidade. Projetos que falhem em alcançar essas medidas qualitativas são vistos como insuficientes e os que alcançarem ao menos alguns desses objetivos, como sucessos, independente de qualquer impacto exterior. A ênfase nas necessidades individuais, experências subjetivas, e no empoderamento são mais típicas em certas vertentes de hippies hedonistas e subculturas punk do que da Esquerda tradicional.

Uma vez que poucos projetos se enquadram perfeitamente nos moldes do Prazer e do Dever, especialmente no início, estas personalidades se encontram trabalhando em conjunto. A princípio, isso pode levar a uma tensão e subsquentemente ao ressentimento e expulsão. Isso aconteceu tantas vezes nos últimos anos que levou ao debate completamente irrelevante sobre “”Anarquismo Social vs Anarquismo por estilo de Vida”, que falha em produzir qualquer coisa exceto alienar e criar espantalhos de ambas as motivações. Nós entendemos a discussão sobre o Dever e do Prazer pode criar uma divisão semalhante, e esse fosse nosso objetivo, seria hipocrisia. Em vez disso, nós deveríamos tentar compreender todo o espectro das motivações sem buscar criar uma falsa “unidade” nas motivações, ou por outro lado, dar início a mais uma rusga sectária. Buscar Significado nos estilos do Dever e Prazer pode ser comparado com o processo de busca de concenso.

O reflexo imediato dos dois fins do contínuo têm sido atacar um ao outro sem jogar luz sobre as reais diferenças motivacionais que afetam seus níveis compromisso. O que cria mais um caminho que leva a atomização dos anarquistas.

Esse ensaio não é um chamado para que todos se unam; esse objetivo é altamente improvável e nem é necessariamente desejavel. Existem sérias limitações em ambas abordagens motivacionais (claramente apontados pelos dois lados) e por tanto outras abordagens motivacionais são necessárias. Para obter sucesso, uma abordagem nova deve compelmentar as forças tanto do Prazer quando do Dever para maximizar a solidariedade dentro de coletivos trabalhando em projetos anarquistas e minimizar a tensão existente entre pessoas que encarnam um. ou outro estilo.

A boa notícia é que um número considerável de anarquistas trabalhando e engajados em projetos não estão nos extremos do contínuo Dever-Prazer. Nós gostaríamos de sugerir uma abordagem motivacional baseada no Significado. Esperamos que a articulação do Significado não só alivie a tensão que sufoca a maioria dos projetos como também dê fôlego para projetos novos e bem sucedidos.

Motivações baseadas primariamente em Significado sempre foram parte do anarquismo; de fato, Significado tem sido usado tanto pelo campo do Prazer quanto pelo do Dever para justificar suas abordagens enquanto atacam um ao outro. Já que a palavra Significado foi reivindicada pelos dois estilos, é importante explicar oque seria uma motivação baseada em Significado. Erich Fromm descreveu motivações baseadas em Significado como “contendo o meio objetivo [Dever] e o subjetivo [Prazer] de compreensão”. O Significado é determinado ao analisar os efeitos externos e os testar contra os sentimentos internos. Um anarquista motivado pelo Significado busca tanto o impacto pessoal (internalizado) quanto o público (externalizado) de seus esforços.

Projetos vistos a luz de seu Significado podem ser avaliados de maneira mais completa e melhor apreciados por sua perpectiva do que pelas outras duas abordagens limitadas, exatamente por que ele considera os desejos quantitativos quanto qualitativos. Agora nosso esforços podem ser julgados por eixos múltiplos. Não é mais apenas uma simpels questão de quantas horas uma pessoa trabalha mas também a satisfação que ela pode manifestar em sua atividade. Um projeto não precisa ser avaliado somente por quão empolgante e divertido é mas também quão efetivo ele é em atingir seu objetivo. Nenhum lado do contínuo é superior ao outro. Ao invés disso, cultiva-se a harmonia para se criar Significado. A aplicação de ambas expectativas cria uma análise mais rica e com mais nuances. Significado também fornece uma ferramenta útil para decidir quais projetos são válidos de utilizarmos nossos limitados recursos e energias. A abordagem Significativa tem a vantagem de retomar toda a história das lutas e projetos anarquistas vitoriosos. Ele também se torna um meio para camaradas ligados aos extremos do contínuo de trabalharem juntos sem descartarem ou reprimirem suas motivações. Quando nós buscamos Significado nos nossos projetos, nós exigimos a realização completa dos nossos esforços e recursos. Nós não vamos mais nos conformar com qualquer um dos fins do contínuo mas bucar o nexo todo. A ênfase no Significado limita o efeito destrutivo de outro obstáculo perene ao trabalho anarquista: a exaustão. A exaustão surge quando muito do nosso tempo e recursos desperdiçãdos em projetos sem sentido. Na prática, iniciativas significativas criam energia e talentos. Eles dão mais fôlego para continuarmos nossas lutas, alcançando projetos de longo prazo. Projetos baseados no Significado nos dão oportunidades excitantes e novas experiências que satisfazem pessoas de toda parte do espectro Dever-Prazer. Em uma cultura que produz em massa, tanto a expectativa do Dever do trabalho intensivo quanto produtos de hedonismo Prazeroso, o Significado justifica o preço de nosso trabalho, recursos e vida. O capitalismo prospera nos extremos do contínuo do Dever-Prazer criando relacionamentos sem significado que nos dividem em trabalhadores e consumidores. A anarquia oferece uma solução para essa absurda sociedade dualista. Projetos significativos vão se tão importantes para anarquistas experientes quanto para recém chegados. Somente projetos que tentem honestamente balancear tanto necessidades externas quanto necessidades internas podem vão ter qualquer experança de oferecer resistência contínua ao incessante miasma da falta de sentido da cultura de consumo cotidiana. Nem o Dever nem o Prazer podem se desenvolver novas e melhores formas de viver em comunidades de resistência vibrantes. Outro mundo é de fato possível, mas precisa ser significativo.