Apontamentos sobre o Uso de Tecnologias nos Protestos de Hong Kong

Esse texto é uma tradução-adaptação , o original pode ser encontrado aqui.

Consideramos esse texto, por si só, muito interessante para uma breve análise das táticas empregadas na revolta de Hong Kong em 2019, unos oferece uma visão bastante nítida dos potenciais insurrecionais que o uso criativo e difuso de tecnologias cotidianas nos oferecem.

Importante ressaltar, o texto data de 2019, de lá pra cá muita coisa mudou no contexto da guerra social local, e Hong Kong parece uma vez mais, pacificada sob as botas do regime chinês. Enquanto nossoscamaradas de lá aguardam o momento de se rebelaram novamente, nós nos reunimos pra aprender e discutir seus feitos.

Se te instigar a curiosidade sobre esses eventos, te recomendo fortemente conferir o documentário em três partes que o Popular Front fez, sobre esses mesmo conflitos.

Morte ao Estado e que Viva a Anarquia.

Boa leitura.

Os protestos pró democracia em Hong Kong estão entrando em sua décima quarta semana. Mais de mil pessoas já foram presas, e muitos ativistas já foram seriamente feridos pela polícia. A festividade de aniversário de setenta anos da China está chegando em primeiro de Outubro, e o quinto aniversário dos protestos de Occupy Central [1] serão em 29 de Setembro, então o clima é de alta tensão.

Irei explicar brevemente o contexto legal dos protestos, e as ameaças que os manifestantes enfrentam, antes de explicar as maneira que eles tem utilizado redes sociais e aplicativos de mensagem para coordenar protestos.

Contexto Legal

Hong Kong é uma Região Administrativa Especial da China, com altos níveis de autonomia formal . O território foi cedido à China em 1997 sob o modelo “Um País, Dois Sistemas”, criado para preservar seu sistema legal e econômico. Pelo tratado, Hong Kong supostamente desfruta desse status especial até 2047.

Os protestos atuais são uma série de confrontos entre manifestantes e as autoridades em Hong Kong, com pressão de Beijing nos bastidores, mas sem interferência aberta. De um lado do conflito está o Chefe do Executivo e os 30.000 membros da polícia de Hong Kong. Do outro, lado, temos essencialmente, todo o resto da população. Nos protestos de 9 e 16 de Junho foram estimados, respectivamente 1 e 2 milhões de participantes nas manifestações, em uma cidade de 7 milhões. Até agora 1.000 pessoas foram presas e manifestantes tiveram ferimentos graves, alguns sofridos após as pessoas serem levadas sob custódia da polícia.

Apesar de existirem bolsões de Hong Kong que apoiam o continente (como a vizinhança de North Point, que tem laços com a província de Fujian), os protestos gozam de amplo apoio social, em parte por conta da violência policial ter escandalizado uma sociedade onde violência é algo raro.

É compreendido que a polícia de Hong Kong é uma autoridade executiva que responde as diretivas de Beijing, mas o sistema de corte de Hing Kong é genuinamente independente.

Hong Kong está fora do Great Firewall[2], com acesso irrestrito a internet. Isso não é apenas uma escolha política, mas uma realidade física; A infraestrutura não está posta de um modo que facilite a expansão rápida dos controles de internet da China continental sobre Hong Kong.

É importante compreender as restrições da China. Hong Kong é a rota da China para o sistema financeiro global, e esse status depende da continuação da independência o sistema legal de Hong Kong. Tanto investimento financeiro estrangeiro, quanto o sistema bancário internacional dependem de Hong Kong por conta de suas fortes garantias oferecidas por suas cortes. Qualquer violação dessas leis, pela China poderiam ter repercussões catastróficas caso espantassem as empresas internacionais.

O status especial de rota financeira protege Hong Kong. A corrupção nos níveis mais altos do Partido Comunista Chinês oferecem um nível adicional de proteção. Oficiais chineses contam com o funcionamento de Hong Kong para várias formas de lavagem de dinheiro. Não existe maneira fácil de comprar uma vila italiana com renminbi[3] que não passe por Hong Kong.

Beijing tem uma combinação de incentivos “macroeconômicos” e “microeconômicos” para deixar Hong Kong sem interferência. Intervenção direta iria ferir a economia chinesa, e o fim da rota financeira de Hong Kong afetaria pessoal e drasticamente grande parte das elites.

Isso torna boa parte das estratégias chinesas de como lidar com dissidências internas, impossíveis de serem usadas em Hong Kong. Em especial, Blackout de Internet, prisões arbitrárias, extradição para o continente ou o uso direto do Peoples Armed Police, o PLA, seriam todos métodos inaceitáveis para o interesse financeiros internacionais.

O problema com essa proteção é que ela é frágil. Uma vez que a China cruze a linha e espante o capital internacional (impondo restrições de internet, ou atropelando as cortes locais), possivelmente não haverá mais defesas contra outras formas de interferência direta.

Ameaças

A Lei Básica de Hong Kong garante aos seus cidadãos a liberdade de expressão e de imprensa. O ponto fraco é a liberdade de reunião. Se a polícia declarar uma reunião de três ou mais pessoas como ilegal, a pena pode ser de até dez anos de cadeia. Os organizadores dos protestos de 2014 responderam ou estão respondendo à essas penas.

A China também tem posto uma enorme pressão sobre empresas de Hong Kong para que demitam trabalhadores que participam dos protestos, mais publicamente a empresa aérea, Cathay Pacific. Pressão semelhante tem sido observada sobre as escolas, agora que o ano letivo está em andamento.

Então, as maiores ameaças para os manifestantes são serem presos por fazerem assembléias públicas, ou serem identificados individualmente, por fotografias ou outros meios. Além das complicações legais, Hong Kong tem uma cultura de doxxing, que não carrega o mesmo estigma que nos EUA. Essa é uma ameaça, tanto para os manifestantes quanto para a polícia.

Outra ameaça que os manifestantes enfrentam são os ataques físicos, tanto por parte da polícia durante os protestos, quanto por parte dos bandidos afiliados à China continental, que possuem permissão para atacar impunemente. Figuras proeminentes da oposição já foram atacadas em plena luz do dia[4].

E por fim, visitantes e moradores de Hong Kong estão enfrentando repressão na fronteira de Shenzhen, onde guardas revistam aparelhos eletrônicos na busca de qualquer conteúdo relacionado aos protestos. Ao menos uma universidade de medicina retirou seus estudantes dos hospitais do continente para evitar submetê-los a essa intimidação.

Seja lá por qual motivo for, as autoridades de Hong Kong tem se mostrado relutantes em fazer prisões em massa. Eles podem não possuir a capacidade física pra isso, ou ter outras outros razões. A estratégia parece ser a prisão de alguns, para desmotivar os demais. Do lado dos manifestantes, o objetivo é não ser um dos 20 à 150 detidos à cada evento.

A ameaça da vigilância em massa é parte do cenário cataclísmico onde a China está enviando pessoas para campos de reeducação semelhantes aos dos uigure. O que não parece afetar as decisões cotidianas das pessoas, mais do que a ameaça de ser pessoalmente identificado.

Aqui, o sistema de corte de Hong Kong também oferece alguma proteção, a China não pode simplesmente pegar uma quantidade massiva de dados de torres de celular e apresentar nos julgamentos; É necessário que haja algum tipo de construção paralela.

Dito isso, a polícia de Hong Kong pode obter amplos dados de vigilância sem mandato, e a falta de medo da vigilância de massa pode ser mais psicológica, ligadas a falta de prisões em massa. As pessoas estão preocupadas em serem identificadas individualmente, e não que em algum momento do futuro as autoridades possam identificar centenas de manifestantes.

Por isso, manifestantes se concentram nas ameaças que podem enfrentar; Usam guarda chuvas e máscaras para esconder seus rostos, alguns usam cartões MTR descartáveis ao invés do Octopus card [5] que é ligado a sua identidade (já que a polícia pode escanear o cartão para saber que trajetos fizeram).

Quase todos trazem telefones celulares para os protestos, destes, poucos são do tipo descartável

Uso de Tecnologia

É importante enfatizar que os manifestantes de Hong Kong são pessoas jovens, improvisando dentro de um cenário bastante estressante. Eles não são ubernerds como vem sendo retratados em alguns canais da mídia ocidental, mas sim, centenas de milhares de pessoas comuns, preocupadas e corajosas, que vem desafiando a China. Retrata-los como especialmente competentes é um desserviço e desconsidera a coragem que demonstram.

Como lideranças se mostraram uma vulnerabilidade em 2014, os manifestantes de 2019 adotaram uma abordagem descentralizada. Não existem lideranças formais, e a coesão se dá à partir de redes sociais e laços de relacionamentos pessoais. O resultado é processo decisório do tipo “protesto twitch play” (aqueles que são velhos de mais para entender essa referência, podem pensar no processo, como uma decisão por tábua Ouija).

Os manifestantes fazem uso constante de duas ferramentas de software: LIHKG (Li-dan), um fórum de mensagens semelhante ao Reddit, e o aplicativo de mensagens Telegram.

LIHKG

LIHKG é um local para proposição de novas ideias e discussão. Existem duas categorias de usuários, destacados visualmente, baseados em se entraram no site ante ou depois da data limite do começo das manifestações. O site requer um email ISP para ser acessado. As duas medidas existem para impedir trolls.

O site é administrado de forma anônima.

As conversas acontecem em cantonês e ao menos uma vez os usuários adotaram uma forma de escrita de cantonês que é incompreensível para falantes do mandarim, como modo de defesa contra os trolls. Os trolls foram de certa forma, impedidos pelo chauvinismo da China continental que vê o cantonês como um dialeto. Esse chauvinismo impediu a China de mobilizar uma comunidade de falantes de cantonês pró China continental, capaz de influenciar ou desmobilizar as discussões públicas do fórum.

Em 31 de Agosto, LIHKG foi sujeito a um ataque de DDOS que derrubou o site. O fórum mudou seu domínio para Cloudflare e se mantém ativo até o momento.

Telegram

Telegram é o mensageiro favorito entre manifestantes. É usado para mensagem um-pra-um entre indivíduos, entre pequenos grupos de pessoas para coordenação, e entre grupos muito grandes para amplificar e disseminar informações. A ferramente de enquete também é uma maneira de firmar consenso no processo de tomadas de decisão em coletivo.

Muitas ferramentas do Telegram o tornam atrativo para os manifestantes.

· Mensagens que Desaparecem — Se a polícia te forçar a destravar o telefone, você não entrega seus aliados.

· Grupos com um número muito grande de membros (dezenas de centenas ou mesmo centena de milhares). O que permite uma rápida difusão de notícias.

· Enquetes. Já que os protestos são descentralizados, alguns mecanismos de tomada de decisão são necessários. Na prática, enquetes são usadas para confirmar decisões, onde o consenso parece nítido.

· Interface amigável para os usuários.

Em agosto foi revelado, após um cyber ataque, que era possível identificar a quais grupos os usuários do Telegram pertenciam.

O Telegram respondeu com uma atualização que permite aos usuários esconder seus números de telefone. O evento parece não ter afetado o uso do Telegram com o público, o que ajuda a comprovar a tese de que os manifestantes estão mais preocupados em serem identificados pessoalmente do que com a vigilância em massa.

Exemplo — O Modo Hong Kong

Um exemplo pode nos ajudar a demonstrar como essas tecnologias são usadas na prática.

Em 19 de Agosto, alguém postou no fórum LIHKG, dando a ideia de formar uma corrente humana em Hong Kong, no aniversário de 30 anos do protesto de Baltic Way, que aconteceu na antiga União Sovietica. Rapidamente, surgiram grupos organizados no Telegram. Eles apresentavam mapas e a logística de quantas pessoas seriam necessárias, e onde.

Logo, grupos de Telegram foram formados para cada setor da rota, que seria paralela ao sistema de metrô.

No dia dos protestos, voluntários monitoraram m tempo real os mapas e enquetes que informavam para onde as pessoas estavam se dirigindo e quais estações MTR precisavam de mais participantes. Voluntários nas saídas dos metrôs ajudaram na formação, se certificando que quando o protesto começasse às 8 PM, todos estariam em suas posições e não haveriam espaços vagos.

Um grupo no Telegram organizou a ação final da noite, com cada manifestante tapando um de seus olhos e cantando “give back the eye” às 9 PM (uma referência ao fato que um dos partcipantes que cegado por uma munição menos letal, disparada por um policial).

Essa grande ação, que seria impressionante em qualquer contexto organizativo, foi feita em quatro dias por voluntários que eram completos estranhos uns aos outros. Imagens dos manifestantes foram então usadas em artes de fãs, posters, materiais de publicidade, e também compartilhadas via KIHKG e Telegram.

HKmap.live

HKmap.live é um mapa mantido por trabalho voluntário, que acompanha protestos em tempo real, incluindo marcadores para presença policial, unidades de elite da polícia, gás lacrimogênio, e alertas sobre a presença da polícia em vias públicas. As informações no mapa são alimentadas por dados através do Telegram. Entrou no ar em Agosto.

Outros Serviços

Manifestantes em Hong Kong compreenderam que o Twitter tem um impacto desproporcional na cobertura da mídia, e que muitos jornalistas ocidentais utilizam o site. Nas últimas semanas tem acontecido um esforço de aumentar a presença de Hong Kong no Twitter, mas relatos mostram que as pessoas tem tido dificuldade de se adaptar ao site.

Alguns hong konguers usam Whatsapp, mas a limitação de tamanho dos grupos o torna menos atrativo que o Telegram. A relativa preferência pelo Telegram também tenha ha ver com desconfiança com relação as políticas de privacidade do Facebook.

O Facebook possui uma relação financeira com Xinhua, a agência de notícias do estado chinês. Xinhua se referiu aos manifestantes como “baratas” em um infame post de facebook (deletado).

Enquanto o Twitter impediu Xinhua de comprar espaço publicitário, Facebook e YouTube continuam vendendo espaço para a estatal mesmo depois de terem dito que iriam dar menos prioridade para esse tipo de conteúdo em seu algoritmo. Na prática, significa que Facebook e YouTube estão tornando o conteúdo da Xinhua menos popular, para que a Xinhua pague mais.

Esse relacionamento não contribui para criar um público cativo do Facebook e WhatsApp entre hong konguers.

[1] Occupy Central; O equivalente ao Occupy Wallstreet e toda aquela onda de eventos que se desenrolaram pelo mundo por 2013

[2] Great Firewall;

[3] Renminbi; Moeda oficial do governo chinês

[4] Alguns casos de violência contra opositores do governo chinês.

[5] Octopus Card e MTR, são cartões pré-pagos que podem ser utilizados para pagar por transporte e compras em pequenos estabelecimentos, a vantagem do Octopus, é que ele não é ligado aos documentos de identidade do usuário