All posts by p1x0

OVNIs e a Saudade do Não Identificado

OVNIs e a Saudade do Não Identificado

Publicado orginalmente em Ill Will por Wu Ming

15 de Março, 2023

Durante a pandemia do Covid-19 em 2020, houve um aumento exponencial de avistamentos de Ovnis por todo Ocidente. Em Fevereiro de 2023, o conceito de “Fenômeno aéreo não identificado” se tornou central na disputa entre os EUA e a China sobre supostos balões espiões.

O coletivo italiano de escritores, Wu Ming, recentemente publicou UFO 78, uma novela na qual a história principal se passa entre Março e Maio de 78. Nela, o sequestro do ex-primeiro-ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas está conectado a uma grande onda de avistamentos de Ovnis que aconteceu na Itália naquele ano. A novela segue de perto outro livro, La Q di Qomplotto [O Q da Qonspiração] (2021) na qual um membro do coletivo Wu Ming desenvolveu uma leitura anticapitalista para pensamento conspiracionista, usando Qanon como seu estudo de caso.

No ensaio a seguir, que apareceu no blog do Wu Ming, Giap, em 24 de Fevereiro de 2023, depois expandido para a publicação no Ill Will, o coletivo italiano interpreta o retorno dos UFOs a nossa imaginação coletiva e a “saudade do não identificado” não apenas como um sintoma da ansiedade climática e nosso dilema pós-pandemia, mas também a manifestação de um “impulso utopista”, uma tentativa de escapar de um sistema que nos força continuamente a nos identificar enquanto sufoca qualquer perspectiva de mudança radical.

Outras linguagens: Italiano, Espanhol, Grego


No meio dos 2010, quando começamos a trabalhar no UFO 78, havia muito pouca conversa sobre UFOs, ao menos no mainstream. Fora de certos nichos, o tópico havia se tornado demodé há anos. De vez em quando alguém nos perguntava: “Sobre o que vai ser a próxima novela?” E nós respondíamos: “É sobre a obsessão em Ovnis que aconteceu na Itália em 78” A essa altura o interlocutor com uma cara confusa, respondia: “Ah, estranho… Porque vocês decidiram escrever sobre Ovnis ?” Dávamos alguma explicação, tentando evitar spoilers. E normalmente um grande “meh” imprimia a si mesmo na testa do ouvinte.


Então por alguma vontade da história, enquanto nós estávamos escrevendo o livro, os avistamentos de Ovnis atraíram a atenção do público mais uma vez. Aconteceu de repente por todo Ocidente, durante os grandes confinamentos da pandemia de 2020. Relatos se multiplicaram em rápida sucessão, eram inúmeros “flaps”[1]. Desde então, é seguro dizer que nós estivemos em meio a uma onda de avistamentos. Esse fato é reconhecido por Washington, também. Em Janeiro de 2023, o Office of the Director of National Intelligence lançou seu relatório anual sobre “fenômenos aéreos não identificados” (hoje uma designação oficial, por isso o acrônimo UAP) que fornece os dados aos EUA. Considerando que de 2002 para 2017 as agências de inteligência classificaram 263 avistamentos, registraram 247 (quase o mesmo número) entre 2020-2022 apenas. Um salto em escala, de dúzias para centenas por ano. Ainda assim, não é nada comparada a onda de 1978, durante a qual aproximadamente 2000 foram registrados somente naquele ano, em um país muito menor que os EUA. Contudo, não há dúvidas que os Ovnis estão de volta. Ou melhor, as pessoas voltaram a avistá-los. Por que?

Olhando para o céu como prelúdio para libertação total

Quando seres humanos se sentem acuados, cerceados (reprimidos), perturbados, eles voltam seus olhos para o céu, para o firmamento. O ato de olhar para o céu estrelado é o prelúdio de qualquer libertação, qualquer revolução. É coincidência que o termo anterior tenha origem na observação das estrelas? A “revolução copernicana” de Immanuel Kant em diante, é uma metáfora para uma mudança de época, para reviravolta das perspectivas, para entrar agora num novo paradigma de conhecimento.

Não existe fundação de civilização ou começo de uma nova fase da história que não tenha começado dessa forma, ao se olhar para cima, por que olhar para o céu amplia a percepção de espaço e portanto de possibilidade, alivia a cabeça dos pesos do presente, permite que se pense mais livremente (o verbo “considerar” vem de cum sidera, na companhia das estrelas) e portanto é sobre aspirar algo diferente e melhor. “E eu vi um novo céu e uma nova terra” (Rev. 2:21).

Pense na tão citada frase de Hamlet, “Há mais entre o céu e a terra. Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia.” (Ato 1, Cena 5). Hamlet profere isso após falar com o fantasma de seu pai. Quando seu amigo (também egresso de Wittenberg) encontra a circunstância “estranha e maravilhosa”. Hamlet responde a ele que espaço infinito implica na infinidade de possibilidades e hipóteses, portanto a todo momento a realidade excede qualquer doutrina do presente, qualquer filosofia e ciência da moda de qualquer tempo que for. É um alerta contra o cientificismo.

Mais objetos voadores que podemos imaginar

Durante os grandes lockdowns nós olhávamos mais frequentemente para o céu. Todos nós fizemos isso. Havia menos poluição luminosa, e o céu estava mais limpo que o normal. Nessa época se acreditava que o céu estava completamente limpo. A imprensa disse que aviões não estavam voando, e na televisão haviam imagens de aeroportos desertos. Então a aparição de luzes inesperadas geraram surpresa. Daí, o salto para pensar que se viu um OVNI, um objeto não identificado, não demorava. Mas o céu não estava completamente limpo.

O Capitaloceno nunca é completamente limpo.

Na primavera de 2020, e de novo no Outono da chamada “segunda onda” (uma onda de contágios, nesse caso), o tráfego aéreo civil era mínimo, mas ele seguiu. Aviões decolaram e pousaram, para garantir viagens essenciais. E haviam os voos militares, que foram eximidos de qualquer lockdown.

Acima de tudo, estão os satélites. A maioria de nós não tem noção de quantos satélites orbitam sobre nossas cabeças. Quantos, você pergunta? Hmm, talvez umas poucas dúzias? Nah. Em 2020 haviam mais de 3000, nos dois anos seguintes esse número cresceu para cerca de 8000 (dos quais aproximadamente 3000 pertencem a SpaceX, ou seja, Elon Musk) e o número total continua a crescer. Aparentemente, com o 5G vai chegar às dezenas de milhares. Ainda mais abundantes são os destroços orbitais: escombros de satélites que colidiram com outros satélites ou foram atingidos por meteoritos, mas também lixo jogado da Estação Espacial Internacional (ISS). De acordo com a Agência Espacial Europeia (ESA), cerca de 36000 peças de destroços com mais de dez centímetros de diâmetros estão voando em órbita neste momento.2

Medidas de centímetros não deviam nos enganar: algumas peças de lixo são muito grandes. Em Março de 2021, o ISS descartou um painel de baterias de níquel-hidrogênio usadas pesando 2.9 toneladas

Então temos os balões de sondagem, vamos falar deles em um momento. Às vezes pode ser o voo de uma lanterna chinesa, às vezes um meteoro pode ser visto queimando conforme entra nossa atmosfera. Resumindo, mesmo em 2020, muitos objetos estavam cruzando o céu, brilhando ou refletindo luz.

Uma saudade do não identificado (1978-2020)

Descobrir o que aqueles objetos eram não teria sido difícil, especialmente naqueles meses, quando as pessoas viviam ansiosamente debruçadas sobre a Internet. Existem sites e apps que nos permitem seguir o voo da ISS, ou ver quantos satélites estão em órbita e traçar suas posições a qualquer momento. Em muitos casos, uma pequena parcela do tempo que as pessoas normalmente gastariam online seria o suficiente para explicar tal-e-tal luz no céu, evitando conclusões precipitadas.

Como pode isso não ter acontecido? Como pode isso ter acontecido tão raramente? É uma questão de preguiça mental, ou ignorância?

Na nossa opinião as pessoas saltam para conclusões sobre OVNIs, no mundo de hoje como foi na Itália de 1978. O não identificado é libertador. Nós tendemos a chamar uma luz no céu de Ovni, ou seja, um objeto não identificado, como uma reação para um mundo ao nosso redor que, agressiva e constantemente exige que nos identifiquemos, para continuamente declarar quem nós somos, de onde viemos, de que lado estamos.

Na Itália, 1978 foi um ano de militarização pesada dos espaços físicos e discursos públicos. Dezenas de milhares de postos de controle entrecruzaram o país, milhões de pessoas foram paradas nas ruas e pedidas que mostrassem seus documentos de identidade. Além disso, havia uma pressão obsessiva para se escolher lados, um incessante questionamento de consciências: em que campo você está? Você está do lado do estado ou com o “terrorismo”? Com a “democracia” ou com os “subversivos”? Você é um bom cidadão ou um “traidor”? Nenhuma terceira possibilidade era dada. Esse era o começo de estados de emergência permanentes como uma – nah, a – estratégia governamental. A partir de então, se você tivesse uma opinião que saísse fora do padrão binário oficial você se encontraria em espaços cada vez mais confinados: nichos e lugares de marginalidade, o beco onde você injetaria heroína, na melhor das hipóteses, a esfera da sua vida pessoal, vida doméstica. Em todo caso, você estava fora do discurso público.

Em 2020, os centros de controle estavam em todo lugar novamente, com policiais guardando novas fronteiras que eram tão perigosas e intransponíveis quanto eram efêmeras, pois estavam sujeitas às vontades das autoridades, e redefinidas com cada nova ordem ou decreto. Havia uma fronteira entre sua municipalidade e a vizinha, uma fronteira entre a rua pública e o parque ou praia que autoridade havia proibido (agentes da lei comumente usaram drones para caçar caminhantes solitários nas matas), uma fronteira entre o resto do parque e o parquinho das crianças cercado pela fita vermelha e branca (numa certa fase os parques foram abertos mas as crianças não podiam usar os balanços), e por aí vai, de maneira quase fractal. A cada uma dessas fronteiras você podia ser parado e identificado.

Era mais que isso: você podia sair da sua casa apenas se sua “auto identificação” (para ser apresentada junto de seu RG) fosse “ confiável”, isso é, se você pudesse provar que sair de casa era necessário. E então a contra-ordem: de certos dias em diante você podia sair para simples “exercícios” mas em uma região você deveria permanecer a 200 metros da sua casa, em outras a 500, etc. Então com o toque de recolher, uma nova fronteira: a fronteira entre as 09:59 p.m. e as 10:00 p.m. que depois mudou, das 10:59 p.m. e 11 p.m. Tudo isso, e mais, foi acompanhado por uma renovada pressão de se escolher lados. Uma pressão que é tipicamente “emergencialista”, mas em 2020 foi mais imperativa que nunca: você está com o governo ou com os “negacionistas do vírus”? Com o governo ou com os “disseminadores de doenças”? As margens para os que rejeitaram essa lógica binária eram ainda mais estreitas do que durante os 1970 da emergência terrorista. Aqueles que criticaram a administração neoliberal da pandemia, desresponsabilizante, e criadora de bodes expiatórios, foram empurrados para espaços extremamente estreitos de discurso, onde eles eram bombardeados com insultos, ameaças e difamações.

Em 2021, com a chegada das vacinas anti-covid, o “passe verde obrigatório” criou uma rede ainda mais densa e exaustiva de fronteiras. De fato, sem aquele certificado (cujos princípios de validade mudaram várias vezes, conforme a vontade das autoridades) a pessoa era excluída da vida social. A lógica binária foi levada ao paroxismo: ou você é a favor do passe verde ou é um “novax” (o curiosamente falso neologismo em inglês que a imprensa italiana usa para antivaxxers) ou então simplesmente um “fascista”. Nenhuma outra posição podia ser considerada. Campanhas de repressão e difamação contra os que se opunham ao governo foram selvagens. Aquela altura a maioria das pessoas podiam apenas obedecer, e seguir o fluxo mais ou menos de má vontade.

Emergência é um instrumentum regni, fundamenta uma realidade que se permite ser descrita e explicada de uma única maneira: à maneira oficial, a do poder e da mídia-Estado-capital. Durante a emergência pandêmica, esse poder era apoiado e legitimado por um – na realidade não-científico – culto a Ciência oficializado pela mídia, um culto cujos televangelistas pontificavam sobre os limites –  não apenas epistemológicos mas limites políticos – de todo o discurso relacionado ao Covid.

Em tais contextos, o não identificado intercepta e interpreta o desejo de fugir da jaula para viver uma vida diferente. É uma manifestação do impulso utópico do qual Ernst Bloch falou, um impulso que pode expressar a si mesmo em toda esfera, “do entretenimento de massas, da iconografia a tecnologia, da arquitetura ao eros, do turismo a piadas e o inconsciente.”[3].

Eu vejo uma luz no céu, e eu posso acessar facilmente uma explicação racional; mas não é mais bonito, mais inspirador, mais aliviante pensar nele como um objeto não identificado? Todo o resto é identificado e certificado – pelo amor de Deus, você não pode me deixar ao menos ter esse momento?

Ainda mais quando não há uma explicação racional e o objeto é realmente não identificado. De acordo com o relatório de Janeiro citado acima, houveram 171 avistamentos inexplicáveis nas últimas duas décadas, e estes números são apenas dos EUA. Alguns destes objetos apresentaram “capacidades de voo ou capacidades de performances não usuais”.

A ufologista britânica Heather Dixon escreveu no The Guardian:

“Geralmente me perguntam se eu acredito em vida extraterrestre, se acredito que um dia haverá contato. Afinal, após 2% dos casos de OVNIs que ouvimos falar, cerca de 2% não são identificados – ainda assim […] Pessoalmente acredito que há uma explicação racional para os objetos derrubados recentemente pelo exército dos EUA. Mas ainda existem mistérios, e penso que sempre vão haver. Eu me pergunto que narrativas os seres humanos vão inventar para explicar os avistamentos do futuro, e que tipo de ficção científica surgirá a seguir. A ciência e os especialistas serão capazes de explicar todas essas coisas eventualmente? Suspeito que não, eu espero que não.” Ufofilo Jimmy Fruzzetti poderia ter dito o mesmo. [4] “Mistério é uma dimensão fundamental do ser humano. Explicar tudo sempre será impossível, exceto como uma projeção distópica. Um mundo onde tudo foi definitivamente classificado, catalogado, quantificado, e certificado seria um mundo onde a imaginação morreu, morrendo junto, portanto, a nossa humanidade.

Chineses ou alienígenas? A ameaça que vem do céu

Em fevereiro de 2023, três meses após o lançamento de UFO 78, o debate sobre OVNIs, e sobre a hipótese de vida alienígena, capturou a atenção do mundo todo.

Em 04 de fevereiro, nos céus da Carolina do Sul, um F22 derrubou um objeto misterioso. De acordo com a Casa Branca, se tratava de um balão espião chinês. Mesmo depois do comunicado o fato, notícias do avistamento circularam o mundo, gerando todo tipo de especulação. A imprensa contatou a usual trupe de atores do improviso conhecidos como “analistas” ou “especialistas em geopolítica”. Como disciplina, a geopolítica tem o mesmo valor que piadas étnicas; por outro lado, tem a vantagem de ser muito telegênica. No campo oposto, especialmente nas redes sociais, os amantes das fantasias conspiratórias – sobre alienígenas, Roswell, “cortinas de fumaça” planetárias, homens de preto, reptilianos, os Elohim, o Projeto Blue Beam, etc – ficaram hiperativos. O governo chinês obviamente protestou, e declarou que o balão derrubado de fato pertencia a eles, mas seria apenas um balão de sondagem, lançado para fins científicos e que acabou saindo de curso. Um veterano da diplomacia chinesa chamou a derrubada como “praticamente histérico, e um uso absolutamente impróprio de força militar”. Autoridades chinesas consideraram que os EUA estavam culpando a China pelo que eles normalmente fazem , já que os balões espiões dos EUA têm repetidamente violado espaço aéreo sobre o Tibet e Xinjiang. Seja lá o que o objeto derrubado fosse, as comportas foram abertas. Paranoia geopolítica sobre os “inimigos do Ocidente”, a mesma paranoia que tem visitado qualquer discurso sobre a guerra na Ucrânia, gerou um alarmismo exagerado, deslocado e diversionista. Entre os poucos que disseram isso abertamente estava Michael Tomasky, editor do The New Republic:

“O que interessa esse balão? […] Ok – se ele está ligado a alienígenas até eu vou admitir que é algo importante. Mas caso contrário – quem se importa? Eu gostaria que você chutasse quantos satélites espiões existem circulando a Terra agora mesmo. Eu vou revelar o número no final dessa coluna[…] Eu entendo porque o interesse no assunto. É algo que uma pessoa comum nunca pensa a respeito e porque a China – desculpe, a CHINA!- é tão assustadora, isso se torna uma grande história […] E a resposta para a minha pergunta acima é que existem aproximadamente 5465 satélites espiões circulando nossa pequena órbita, vigiando cada centímetro do nosso globo a cada segundo de todos os dias. Se um cara qualquer rouba uma vaga de estacionamento na Chester Street em Maysville, Kentucky, e a China quer saber a respeito, ela vai descobrir. As pessoas precisam entender a realidade que vivem.”

Tarde demais. Naquela altura o establishment estava vendo balões espiões em todos os cantos.

Na sexta-feira 10 de fevereiro, outro F22, dessa vez nos céus do Alaska, derrubou um segundo objeto, que foi descrito como tendo “o tamanho de um carro pequeno”. As piadas vieram prontas, e inúmeras pessoas nos mandaram mensagens dizendo, “os EUA derrubaram um Renault 4!” [5] No sábado, 11 de fevereiro, houve mais uma derrubada, dessa vez em espaço aéreo canadense, sobre Yukon, em acordo com o primeiro-ministro Justin Trudeau. O objeto foi descrito inicialmente como “um pequeno cilindro”, depois como “um pequeno balão de metal”.

No domingo, 12 de fevereiro, um F16 derrubou um quarto objeto – com uma “estrutura octogonal e fios” – sobre o Lago Huron, na fronteira entre o Michigan e o Canadá. Mais tarde descobrimos que o primeiro míssil errou o alvo por conta do tamanho diminuto do alvo.

Em uma coletiva de imprensa no mesmo dia, quando questionado se havia desconsiderado uma possível de origem extraterrestre para os misteriosos objetos, o General Glen Vanherck, o responsável pela defesa do espaço aéreo da América do Norte, respondeu, “Eu vou deixar a comunidade de inteligência e de contrainteligência responderem isso. Não descartei nenhuma possibilidade ainda.”

É claro, que o que Vanherck queria dizer era, “não me incomode com algo tão idiota”; mas o mero fato de que um general pareceu não descartar a ideia de que o espaço aéreo dos EUA foi violado por alienígenas seria algo como um furo de reportagem, e um emaranhado de manchetes sensacionalistas surgirem ao redor de todo o mundo.

No dia seguinte, um oficial da Defesa dos EUA disse em anonimato ao repórter Phil Stewart, da Reuters, que “não há indicação de atividades de alienígenas ou extraterrestres nestas derrubadas recentes.”

O Jogo ($400000 por lançamento)

Em 15 de fevereiro, o Presidente Biden declarou que os últimos três objetos derrubados não eram balões espiões mas “provavelmente balões ligados a companhias privadas, recreação ou instituições de pesquisa, estudando o clima ou conduzindo outras pesquisas científicas”

De acordo com o Serviço de Meteorologia Nacional dos EUA, 1,8000 balões meteorológicos são lançados todos os dias, 92 somente nos Estados Unidos. Eles são usados para transmitir dados sobre temperatura, umidade ou pressão atmosférica em uma área específica. Destes, apenas 20% são recuperados. Os 80% restantes se tornam lixo do céu, sucata celestial, um parente do lixo espacial que mencionamos acima.

Além destes balões meteorológicos, existem os usados para telecomunicações, lançados por companhias como o Google.

E então nós temos os chamados balões de grande altitude, que são pequenos – apenas um metro de diâmetro – e feitos de PET luminescentes, então eles são altamente visíveis. Eles custam muito pouco e são acessíveis a todos. A comunidade de radioamadores os usa para lançar estações repetidoras e receber dados sobre sua navegação. Balões de grande altitude são carregados por energia solar, então podem voar por muito tempo. De acordo com algumas estimativas, 2.000 são lançados todos os dias. É mais provável que o objeto derrubado no Canadá fosse um balão de grande altitude chamado K9YO-15, que iniciou sua viagem em Illinois, em 10 de outubro.

Enquanto montar e lançar um balão de grande altitude custa apenas 30 dólares, cada míssil AIM-9X Sidewinter (o tipo usado para as derrubadas) custa $400000. Não admitindo, mas supondo que o primeiro objeto fosse de fato um balão espião, e considerando que ao menos um ataque não foi bem sucedido, os EUA gastou 1.5 milhões para derrubar, ao que tudo indica, o balão de algum nerd e duas sucatas aéreas.

Se os EUA decidirem travar guerra contra todo o lixo aéreo a indústria de armas comemoraria esfregando as mãos. “Uau, você sabe quantos mísseis vamos vender?” Mas em poucos dias o governo viria à falência. A verdade é que a guerra na Ucrânia tornou o Ocidente ainda mais estúpido. Nós sabemos menos sobre o “Oriente”, mas provavelmente as coisas não estão melhores por lá. As classes dominantes desperdiçam recursos, tempo, e energia em seus jogos de Risk enquanto, para nomear apenas um problema (mas o maior!), o desastre climático tem acelerado suas próprias dinâmicas. Incluindo dinâmicas culturais, que talvez incluam a atual “ansiedade ufológica”.

OVNIS de dia: oque eles representam?

Uma curiosidade dos últimos episódios é acontecerem durante o dia. Os episódios relatados aconteceram no céu diurno, que é muito diferente do firmamento noturno. À noite (quando a poluição permite) nós somos cum sidera; à noite nós podemos deixar nossos pensamentos correr livres, e pensar grande. Em contraste, o céu diurno não é nada além da atmosfera vista de baixo. E a atmosfera hoje nos inquieta como nunca nos inquietou antes, mesmo que a maioria de nós ignore estes tipos de pensamentos para evitar encarar suas consequências.

Conforme escrevemos, não chove há dois meses. Você dirige seu carro sobre as pontes e os rios estão secos. O Po, o Rhine, o Tagliamento, o Arno… a maioria dos rios italianos e (europeus) estão praticamente secos. Você vê, mas ignora o pensamento que se insinua: se já chegamos neste ponto no inverno, esse verão vai ser catastrófico. E, no longo prazo (apesar de nem tão longo) esse lugar vai simplesmente se tornar um grande deserto?

Essas questões podem te esmagar, é por isso que você acaba pensando em outra coisa, e outra e outra, evitando as más notícias, acontecimentos cuja enormidade é suficiente para adoecer qualquer um de nós, como o fato de que certas áreas da Amazônia passaram a emitir mais dióxido de carbono do que captura.

Mas elementos reprimidos retornam. Ansiedade climática manifesta a si mesma de outras formas. No lugar da chuva, outra coisa aparece no céu: balões espiões, tecnologias chinesas de vigilância, ameaças alienígenas…Essas são metáforas inconscientes da nossa ansiedade climática. Elas representam a ameaça do futuro, o futuro que nós reprimimos, ou (como as fantasias conspiratórias sobre “chemtrails” e “guerra climática”) imaginamos através do viés cognitivo, as forçando em padrões mais usuais ou mais facilmente “administráveis”.

O realismo capitalista imagina alienígenas capitalistas

Dependendo do momento, é possível ter medo do céu, ou olhar para o céu sonhando com salvação, um novo começo, uma vida além da rotina diária, um futuro digno.

Como as melhores ficções científicas têm mostrado por décadas, sempre que imaginamos vida inteligente em outros planetas, nós expressamos algum impulso utopista. A curiosidade sobre hipóteses extraterrestres, a esperança de que mais alguém “lá fora”, tudo isso está intimamente ligado a um desejo de pertencer a outro lugar, outra coisa que não este Capitalosceno devorando nosso futuro.

Certamente o The Economist, um dos mais ferrenhos defensores do realismo capitalista, é incapaz de reconhecer este impulso enquanto dedica um artigo inteiro às novas e cada vez mais sofisticadas maneiras de pesquisar vidas alienígenas no universo. Tanto o artigo quanto às hipóteses apresentadas nele confirmam que a imaginação capitalista é limitada por uma paranoia circular: é incapaz de imaginar nada além de si mesmo, isso é, vampirismo, extrativismo predatório, exploração, prevaricação, guerra. Após expor hipótese de que poderiam haver “civilizações estelívoras”, isso é, capaz de usar e consumir a energia de estrelas inteiras, o autor do texto conclui nos alertando que fazer contato com civilizações alienígenas de posse de tecnologias imensamente mais avançadas que a nossa poderia ser empolgante, “ainda que muito perigoso”.

Isso soa quase como uma resposta ao que escreveu o controverso guru trotskista J. Posadas escreveu em Junho de 1968. Supondo que toda civilização capaz de viagens intergaláticas deveria ser superior ao capitalismo, Posadas explicou

O capitalismo sente-se inferiorizado frente um sistema que considera superior. que ele vê como superior. As pessoas chegam à conclusão de que o capitalismo é inútil. [Diante dos OVNIs, as pessoas] dizem: “Olha para aquilo! E tu, para que serves?” A classe dominante sente-se diminuída [e tenta] espalhar a impressão de que isto é fantasia, para que as pessoas para que as pessoas não pensem que existem formas superiores de relações e que e que o capitalismo é incapaz de atingir esse nível.

Décadas depois, o realismo capitalista responde dizendo: não se engane, se outras civilizações existem, eles pensam exatamente como os capitalistas pensam. Se tivéssemos o poder de consumir estrelas inteiras para extrairmos sua energia, nós a consumiríamos, não ? Ao menos eles admitem que se em algum outro canto do universo existem pessoas como nossos elites e opressores daqui da Terra, bom, eles são o tipo de pessoas que você não quer encontrar.

Finalmente (por hora)

Aquele velho texto de Posadas – o mais conhecido de seus escritos – carrega muitas afirmações ridículas, não somente pela excentricidade do personagem (do qual nos inspiramos para UFO 78’s, Romulo Casella), mas também por vestígios ideológicos que sua corrente atual partilhava com muitos do movimento comunista do século 20: um entendimento grosseiramente linear do devir histórico,das tecnologia e desenvolvimentos de forças produtivas como artigos de fé, etc.

No entanto, precisamos aprender a identificar o que há de verdade nisso: Só uma imaginação capaz de ir além do capitalismo nos permitirá reunir estas expressões dissonantes de impulso utópico, começando pelo desejo do não identificado, e voltá-los em direção à mudança.

Alguns de nós estamos nos preparando para uma mudança, mesmo se pareça que estamos apenas olhando para o céu.

Imagens: Maria Lax

NOTAS

1. Na ufologia, um “flap” é uma série de avistamentos em uma pequena área, em um currto intervalo de tempo.

2. Se você está curioso sobre quantos detritos menor que 10 centímetros exitem, bem, o número está na casa dos milhões. Nenhum deles é visível da Terra, nem a olho nu, nem com telescópios comuns, por isso não parte dos debates sobre OVNIs. Entretanto, todos esses objetos refletem luz e contribuem enormemente para a poluição luminosa

3. Frederic James, Archeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Science Fiction, Verso, 2005,

4. Jimmy Fruzzetti é um personagem em UFO 78. Um representante de ufófilos, ele critica ufologistas pois “eles tem o Logos na cabeça. Eles são logocentricos, eles querem submeter os ovnis ao Mundo, a Razão, ao Significado [..] Ufofilia é ‘uma amizade com objetos não identificados’. Significa rejeitar preconceitos e impulsos de reconhecer e classificar. Talvez você tenha percebido que ufologistas se dividem em duas grandes correntes: racionalistas e paranoicos. Toda vez que um cara vê uma luz, [racionalistas] se apressam para, questionar, enquadrar, selecionar e descartar hipóteses. Somente quando eles não encontram nenhuma explicação racional para o avistamento eles admitem que o fenômenos pode ser de origem extraterrestre. [Paranoicos] parecem fazer o oposto: quando enxergam uma luz no céu ele imediatamente concluem que é uma na espacial ou veículo alienígena. Alguns deles acreditam que extraterrestres vêm visitando nosso planeta por milênios, de fato, eles vivem aqui e estão se escondendo entre nós, com intenções benignas ou malignas dependendo das versões. De todo modo, os Que-Mandam-no-Mundo […] os conhecem muito bem, eles sabem disso a muito tempo, mas nos mantém no escuro. Os estados tem relatórios de inteligência altamente confidenciais que eles escondem em laboratórios ultra secretos. Outros não vão tão longe, mas seguem supondo que ELES – as elites, os erviços secretos, cientistas – sabem de algo que não estão nos contando. Ah, se ao menos eles não escondesse essa verdade, esse Mundo, para eles mesmos! Aqui, as duas abordagens parecem diferentes, mas ambas são logocentricas. As duas tribos convergem como inimigas dos OVNIs. Quero dizer que os ufologistas são inimigos dos objetos não identificados. O objetivo deles é os identificar e portanto os privar do direito de indeterminação.”

5. O Amaranth Renault 4 no qual o corpo de Aldo Moro foi encontrado em Maio de 1978 é provavelmente o mais famoso e iccônico carro da história da Itália. Ele também aparece na capa de UFO 78, flutuando no céu sobre uma montanha misteriosa. 

MANUAL GONZO FUTURISTA

Clique [AQUI] para ler a publicação original, lançada no imemorial ano de 2012.

NOTA: Todas as notas [numeradas] são da versão em português.

Esperamos que essas ideias sejam úteis como propostas-técnicas de como navegarmos nossas consciências nesse território da guerra computo-informacional que chamamos cotidiano.

Anarquia y Estranheza, siempre.

Puro Aguante, compas.

O MANUAL DA FUTURISTA GONZO

1. INTRODUÇÃO: VUCA PRA CARAI

2011 foi um ano cachaça. Por mais que alguns queiram pintar esse momento como uma exceção ou uma aberração, não vejo motivo para considerar que as coisas vão calmamente voltar ao normal. Sem uma mudança estrutural drástica, os desdobramentos de ‘expansão da contração fiscal’ não são nada menos que comportamento de culto à carga [1] – um eco político da tribo de Vanuatu que, quando confrontada com um mundo que ultrapassava sua concepção cultural, acabou por idolatrar o Príncipe Philip.

Somos todos de Vanuatu agora. Submetidos a incerteza e a disrupção súbita, nossa compreensão da causalidade desmorona como pão-de-ló abatumado. Com cérebros programados para reconhecer padrões, na falta de pistas, nós (metaforicamente) andamos sobre carvão em brasa para discernir o que é sinal do que é estática. Aos cães pavlovianos[2], nuvens com cara de gente, e as succubi da paralisia do sono, agora podemos adicionar a austeridade econômica. A retórica da ‘expansão da contração’ hoje, é magia simpatética. Keep Calm and carry on. Mantenha sua cabeça abaixada. Você não é importante o suficiente, então se mantenha na sua insignificância, dócil, sem interferir. Saia para fazer compras que tudo vai voltar ao normal [3].

Confie nas autoridades financeiras para oferecerem outra cabeça aos mercados, se for preciso, mas tratar mercados como pessoas (ou pior, como deuses seculares) é como esperar que o homem de palha [4] cheio de camponeses sequestrados dialogue calmamente com você. Cedo ou tarde, você vai precisar admitir que não temos como voltar para o hedonismo de plástico brilhante dos anos 90. Não existe máquina do tempo pra nós; Não tem como desconjurar esse djinn [5] em específico.

Invés disso, nós temos a duvidosa honra de vivermos em tempos pós-normais. Parabéns pra nós.

Como usado aqui, o conceito de “pós normal” tem origem com o filósofo britânico Jerry Ravetz e o matemático argentino Silvio Funtowics. Em sua pesquisa sobre ciência política e risco, o termo “pós-normal” é usado para descrever situações onde “fatos são incertos, valores estão em disputa, riscos são altos e as decisões urgentes” (Ravetz, 1999). A descrição te soa familiar ? O Acadêmico e comentarista Ziauddin Sardar sugere que sim, já que vivemos em um era que:

“se caracteriza pela incerteza, mudanças rápidas, realinhamento de poder, agitação e comportamento caótico. Vivemos em um período limiar, entre a morte de velhas ortodoxias, onde as novas ainda estão por nascer. … Uma era de transição, uma era sem a confiança que podemos retornar para qualquer passado que tenhamos conhecido e sem confiança em nenhum caminho para um futuro alcançável, desejável ou sustentável.” (Sardar, 2010).

Mais que tudo, esse é o ruído de fundo dos 2010. Para uma segunda opinião, não precisamos olhar para mais longe que as escolas e universidades alimentadas pelo complexo militar-industrial estadunidense, onde o acrônimo talismânico “VUCA” surgiu para identificar contextos operacionais de notável ”volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade”. Situações “VUCA” mudam rapidamente e de maneiras inesperadas, deixando seus participantes surpreendidos por uma sobrecarga de informações, névoa de guerra [6], e o risco de um tiro pela culatra mais mortal que qualquer exército.

Seja dentro ou fora do campo de batalha, 2011 foi VUCA pra carai.

2. ENTRE O COLAPSO E A TRANSCENDÊNCIA

Então em 2012, a situação escalou. O mundo gira mais rápido, acumulando complexidades enquanto o Império Estadunidense desmorona em uma nova ordem mundial definitivamente mais interessante. Após vinte, cinquenta ou quinhentos anos de globalização (dependendo), nós tropeçamos nas margens da (des)integração, observando os Mayas surgirem de um buraco no céu, para descobrirmos o que nós ganhamos: transcendência ou aniquilação. Bem, essa é a programação esperada. A realidade que se aproxima é muito menos binária. Em tempos pós-normais, o mundo tem tendências centrífugas e centrípetas: transcendências e colapsos; integração e fragmentação, a História não acabou com Fukuyama. O colapso contém as sementes fractais da transcendência. As coisas se juntam à medida que desmoronam. Nossa terra não é plana como a de Thomas Friedman, mas o futuro “desigualmente distribuído” de William Gibson. Tem seus contornos.

Com as névoas da VUCA obscurecendo o terreno da ação, em certos momentos, pode ser um trabalho ingrato compreender a configuração precisa desses contornos. Para tudo além da nossa compreensão e experiência imediata, nós confiamos na mídia – e enquanto a “revolução” das mídias sociais democratizaram o acesso a essas ferramentas, também tornou mais fácil espalhar boatos e desinformação. Conforme adentramos 2012, lembre-se de manter seu detector de baboseira sempre ligado e por perto.

Para Mark Lind, a colisão entre transcendência e o colapso se manifesta como ‘turboparalisia’, uma ‘combinação de movimentação intensa e dramática com ausência de movimento contínuo em qualquer direção específica’ (Lind, 2011). Nessa leitura, um pico súbito na dinâmica da VUCA faz grandes agentes – grandes empresas, estados-nação, organizações – chacoalharem com força, em comportamentos impensados de culto à carga e mudanças drásticas de direção, enquanto velhas certezas são varridas para longe. Para o arqueduque do cyberpunk, Bruce Sterling, essa é a Transição-para-Lugar-Nenhum: “Não existe progresso nem conservadorismo, pois não sobrou nada à ser conservado e nenhuma direção para se progredir”. (Bruce Sterling, Reboot 11).

Do Partido Republicano dos Estados Unidos ao Occupy Wallstreet, de Benghazi à Wuhan, “engrenagens giram furiosamente e motores estão sendo acionados, sem efeito algum”(Lind, 2011) Bem, nenhum efeito aparente. Apesar da minha evidência bamba, sou tentado a interpretar isso como um movimento aparentemente retrógrado. Ainda não está tudo perdido!

Então, apesar de possivelmente perdermos 2012 para a agitação sem rumo da turboparalisia, não vai ser o fim do mundo – e certamente não de forma que siga o plano dos nossos supracitados, parentes meso-americanos. O preocupante é que, não precisa ser. O meme já escapou do laboratório. Enquanto eu escrevo, ele já está afetando o comportamento das pessoas, apagando o limite entre cultura pop e discurso público. Para o arqueoastrônomo Anthony Aveni, o impacto retórico do fenômeno 2012, nos dá pistas de um mal-estar cultural mais profundo. Sem acesso às certezas do Progresso com P maiusculo: — “nós nos voltamos para fora, para entidades imaginadas que estão fora do espaço e do tempo – entidades que talvez possuam conhecimentos superiores… Se nós não podemos dialogar com nós mesmos, talvez possamos conversar com o Outro – mesmo que se nunca tenha falado nossa língua. A Evolução precisa de ajuda; nosso mundo precisa ser salvo. Os Mayas nos oferecem uma solução transcendente, um alinhamento, uma epifania. E por isso nós os romantizamos.” (Aveni, 2009;161)

Mesmo se apagassemos da história a torrente de eventos históricos mundiais de 2011, só esse desespero já teria sido suficiente para garantir que 2012 fosse mais estranho do que o de costume. É o suficiente encarar os desafios do pós-normal com um aceno sem convicção a uma cosmologia baseada em sacrifício humano e cultivo de milho ? Certamente não. Se estamos procurando por respostas para nossa crise histórica-global em mayas invisíveis, então algo, em algum lugar, deu bastante errado. Em um cenário de esgotamento do petróleo, de proteína, da atenção e da confiança, talvez nós tenhamos chegado ao esgotamento do futuro, com 2012 como ‘a mítica muralha onde a imaginação do Ocidente chegou a um abrupto fim’. (Montuori, 2011: 224)

O argumento de Montouri é persuasivo. Em termos de visões do futuro, o que nos foi deixado para imaginar ? Microsoft cria vídeos, Hollywood o apocalipse, e os sonhos de jetpack de baby boomers grisalhos. Enquanto isso, presos entre apocalipse econômico e transformações, nós estamos sitiados por um mundo que mal compreendemos. Bruce descreve precisamente o clima:

“As coisas estão simplesmente se desmantelando, você não consegue acreditar nas possibilidades, mas nunca se deu conta que iria sentir tanto pavor. É como um salto para o desconhecido. Você está caindo em direção ao solo a novecentos quilômetros por hora, quando percebe que não existe solo algum (Bruce Sterling, Reboot 11).

Pré-programado para evitar risco desnecessário, nosso cérebro de mamífero nos diz para cavar; fortalecer; consolidar nossa posição. Puxando as cobertas, nós nos fingimos de morto, pelo medo do que podemos perder. E funciona, por algum tempo: o monstro não te come. Mas quando você abre os olhos, eles ainda estão lá – um par de olhos injetados de sangue, brilhando no escuro. Apesar dos monstros, esse não é o momento para se esconder. Bem longe disso! Tempos pós-normais pedem por medidas pós-normais; ele exige que você redobre suas apostas.Nas imortais palavras de Hunter S. Thompson, “quando as coisas ficam estranhas, os esquisitos se tornam profissionais ”.

Em 2012, as coisas vão ficar bem mais estranhas.

3. AÇÃO E TOMADA DE DECISÃO PARA A ESQUISITA PROFISSIONAL

Em 1991, Bruce Sterling deu uma palestra em San Jose. Exaltando as potências e virtudes de ser estranho, ele implorou que a audiência evitasse a bocarra aberta da armadilha de ursos que é a mediocridade.

“Você não chega onde quer por aculturação. Não seja uma pessoa polida. Pessoas polidas são suaves e chatas. Seja uma pessoa espinhosa. Cultive espinhos em todos os ângulos. Fique atravessado na garganta deles como um baiacu.” (Sterling, 1991)

Com sua perspectiva e habilidades únicas, a esquisitona – e sua subcategoria, a gonzo futurista – está particularmente bem posicionada para lidar com uma década turbulenta. Com um olho na estrada à frente, ela pode encarar ou se esquivar de situações conforme elas surgem, mapeando um caminho seguro através dos campos de batalha VUCA de um mundo turboparalítico. Uma coisa podemos afirmar: daqui 5-10 anos, nosso mundo será (alguma forma) de computação onipresente. Quando tudo são sensores, e o “big data” do pós-normal ameaça enterrar a todos nós em constante barulho, a capacidade de afinar nossos sentidos talvez se prove nossa maior vantagem. Para o futurista Scott Smith, “armazenamento de quantidades massivas de dados é apenas um exercício de acumulação se nós não podemos ver, contextualizar e usar os padrões no barulho” (Smith, 2011). O analista de padrões tem poucas chances de ter seu trabalho terceirizado ou automatizado, mas, para tornar úteis os padrões em meio ao ruído, nós precisamos aprender a distinguir entre padrões reais e as faces nas nuvens.

Nós precisamos de reconhecimento de padrões. Reconhecimento de Padrões[7]. A protagonista do livro de mesmo nome, de 2003 de William Gibson, Cayce Pollar, é pensada algo como um “vórtex de mídia autoconsciente”, o que nos dá um modelo para a gonzo futurista. Para Cayce, a experiência vivida no 9/11 virou uma chave em algum lugar dentro dela, tornando-a hipersensível à estética de marcas corporativas. No começo da história, ela encontra o nicho dos coolhunters e da consultora criativa, explorando a reação pré cognitiva de seu corpo a logos (os piores, induzindo náusea e pânico).

‘Dorotea removeu do envelope, uma arte de uns 30 centímetros. Segurando ela pelos cantos superiores, entre a ponta de seus indicadores, ela mostra pra Cayce (…) Tem um desenho ali, um tipo de escrito japonês feito com pincel grosso, uma mídia, ela sabe, para ser a marca de Herr Heinzi. Para Cayce, aquilo lembrava bastante um espermatozoide curvado, como se fosse feito pelo cartunista underground Rick Griffin, por volta de 1967. Ela sabia quase imediatamente que aquilo não ia, para os padrões opacos de seu radar interno, funcionar. Ela não tinha como explicar como sabia disso’ (Gibson, 2003)

(Gibson, 2003: 12)

A “base” de domínio de conhecimento específico de Cayce é ao mesmo tempo ampla e profunda – perceba a referência à Rick Griffin – ela não tem meios de saber como sabe. Ela está ciente de um “radar interno”, mas, como algo separado de sua mente consciente, não tem ideia de como isso funciona. Apesar de Cayce usar suas capacidades como fonte de renda, seu papel como sensitiva/coolhunter é mais uma disposição corporal do que carreira. Analisando os detalhes e implicações da obra de Gibson, a teórica literária Lauren Berlant descreve como a disposição de Cayce permite que ela “surfe a onda do momento, para fazer da situação o que é, algo a ser vivido, se envolvido por, e deixar passar”. Soa um tanto gonzo, não soa ? Sem ter as habilidades quase sobrenaturais de Cacey, nossa gonzo futurista precisa de uma prótese; algum tipo de aikido cognitivo.

Isso seria algo que em linhas gerais permitiria a ela entender instintivamente as dinâmicas do mundo pós-normal, e identificar os locais-chave e os pontos de ação. Até onde eu sei, o que temos de mais próximo que existe é o Ciclo OODA. Originalmente criado pelo estrategista John Boyd, o ciclo OODA é uma estrutura para aqueles que precisam tomar decisões sob pressão. OODA. Observar. Orientar. Decidir. Agir. A gonzo futurista é um indivíduo super empoderado de esperança. Ela talvez tenha sido uma graduada sem futuro, ou vítima de cortes no setor público, mas desde então, ela teve seu luto e seguiu em frente. Ela brinca, testa e brinca testando; Fazendo o melhor possível com as ferramentas e tecnologias à sua disposição. Se sente confortável pedindo (e dando) apoio para seus amigos, pares e tribo, suas habilidades de “criar sentido” são sociais e conectadas. Seu pensamento, ocasionalmente, “estará localizado dentro da mente de outras pessoas”.

A gonzo futurista é uma “generalista profunda” e uma “poliglota analítica”. Ela tem um senso quase sobrenatural dos impactos e implicações… [está] pronta para se adaptar quando necessário, construindo sistemas de longa duração quando possível. Como Cayce Pollard ela ‘é uma ‘mulher de afetos, não de sentimentos’ (…) [uma] imperatriz da amígdala’. (Berlant, 2008: 11)

A gonzo futurista é resiliente. Ela não trabalha duro, trabalha de maneira esperta. Ela tem um olho no “adjacente possível” (Johnson, 2011), troca códigos e contribui para a coletividade. Ela pode ser privilegiada, mas não tem interesse em competição, macho alfa medidor de piroca, ou pé rapado. O sucesso dela, não vem às suas custas. Bombardeada por estímulos, a gonzo futurista é uma cyborg OODA. Observa, orienta, decide, age. Vamos dixavar isso.

3A. OBSERVAR E ORIENTAR

Para a gonzo futurista, a fase de observação desse ciclo operacional se parece com uma etnografia. Esse tipo de observação é um atalho para todo tipo de levantamento de informação, então, faça leituras amplas, tire fotos, e faça perguntas. Sonde. Mantenha registros. Se algo parece fora do lugar, provavelmente é relevante.

Quando se trata de observação, seu nêmesis é o filtro da bolha – uma câmara de eco forjada pelo Google e Facebook; um “universo de informações únicas para cada um de nós… que altera fundamentalmente a maneira que encontramos ideias e informações” (Pariser, 2011:9) talvez a bolha seja confortável, mas “há menos espaço para encontros aleatórios que nos trazem inspiração e conhecimento “ (ibid.:15) O futuro é uma cena de crime, e todas as pistas estão lá fora. Entre no campo. Sempre que possível, maximize sua exposição ao que é aleatório – afie as ferramentas do “cyborg de mídia” (Sloan, 2010), e vá a mais festas.

As observações que você faz são as estrelas pelas quais vai navegar. O estágio de orientação do ciclo OODA começa assim, conforme você começa a construir um mapa da situação em que se encontra. Nessa fase você precisa confiar no seu instinto, no seu intestino, na pré-consciência e nos desconhecidos desconhecidos – as coisas que você não sabe que não sabe. Misturando novas informações com experiências anteriores, procurando por links. Procure por sinergias inesperadas. Para sinais fracos, cultive sensibilidade estética e cultural.

Foda-se a objetividade. Quando  a objetividade é impossível, a busca por ela, te deixa exposto a abusos. Brelant descreve a protagonista de Gibson, Cayce Pollard, como “imperatriz da amídala” (Berlant, 2008:11). Peter Diamandis e Steven Kotler descrevem essa porção do lobo temporal do cérebro como ‘seu sistema de alertas prévios, um órgão em constante alerta, sempre escaneando por qualquer coisa que poderia ameaçar a sobrevivência’ (Peter Diamandis e Kotler2 2012). Futurismo gonzo pede que você ouça sua amídala: eleve o subjetivo, o emocional, e o memético. O choque com o futuro é social e psicológico, então continue se perguntando: como essas observações fazem você se sentir ?

Leia (e saia com) outras pessoas que entendem o que tá rolando. Minha lista inclui John Robb, Paul Mason, Carlota Pereza, Bruce Sterling, Noah Raford, Marina Gorbis, Jamais Cascio, e Venkatesh Rao. Sua lista deveria incluir pessoas o suficiente para cobrir qualquer fraqueza de indivíduos específicos. Nas palavras de Bob Johansen, é melhor entrar nesse estágio do ciclo com uma série de ‘opiniões fortes, mal amarradas.’ Esteja preparado para abandonar crenças conforme novas informações surgem. Intransigência é o inimigo. Não se afunde. A guerra contra o culto a carga nos obriga a questionar sabedorias consolidadas, desafie pensamento de manada, a desenterre os legados do futuro, onde quer que os encontre. Evite húbris. Você não tem todas as respostas, mas pode fazer as melhores perguntas.

Use seu próprio viés evolucionista em sua vantagem. Não seja apenas um escravo da sua amídala, bote ela pra trabalhar. Em Inside Jokes, Hurley, Dennet e Adams sugerem que o burburinho positivo do ‘humor’ existe para mitigar o risco de processos heurísticos rápidos que o cérebro se apoia ‘para dar saltos de lógica em tempo real’ (hurley, Dennet & Adams, 2011: 4). Para combater suposições e pensamento mágico:

‘é preciso que haja uma política de checagem dupla a esses candidatos a crenças e suposições, e a descoberta e resolução desses, em alta velocidade é sustentada por um poderoso sistema de recompensa – o sentimento de humor; de gozo – que deve sustentar essa atividade em competição com todas as outras coisas que você poderia estar pensando sobre (Hurley, Dennedt e Adams, 2011: 13).

Para Stuart Candy, ‘design é principalmente a busca por apps matadores, enquanto a futurista caça imps matadores’ (Candy, 2010. 188). Para cultivar uma sensibilidade cultural-estética a sinais fracos, você precisa amarrar os químicos liberados pela amídala estimulada e – mais tarde – a resposta humorada, a esses ‘imps matadores’, algo que demanda um certo nível de treinamento cerebral.

Nós não estamos falando de sudoku aqui. Maximize sua exposição a dissonância cognitiva e tudo que for estranho pra caralho. Em 2010-11, Sterling e Gibson começaram a falar de ‘fubar’ [8] como unidade métrica para a estranheza contemporânea. A gonzo futurista vive numa dieta informacional de notícias forjadas numa futuridade bruta, situações fodidas pra além da compreensão, e manifestações efêmeras de elevação tecnológica. Eles focam em coisas que excedem sua escala de referência, deliberadamente buscando o que provoca, nas palavras de Joseph Addison, ‘um compreensível senso de horror’.

Parte desse efeito vem de uma falta de limites e fronteiras, a súbita exposição de níveis de complexidade situacional previamente obscura, e a justaposição de elementos dissonantes. Como aponta Sardar, ‘desde que tudo é interconectado, complexo e caótico, e em rápida mudança, nada pode ser de fato ser descrito com certeza’ (Sardar, 2010). O melhor que podemos nesse caso, é mapeamento parcial; um sinal de ‘você está aqui’ em uma incerta visão panorâmica.

3B. DECIDIR E AGIR

Tendo se orientado de forma (semi-)efetiva em um ambiente volátil e incerto, o próximo desafio é passar de mapear o mundo para agir nele. As características desse novo ambiente operacional delimita o espaço em que você pode agir, com a complexidade e ambiguidade dos 2010’s apresentando uma série única de desafios para aqueles buscando deixar uma marca duradoura no mundo. Como argumenta Sardar, as condições da VUCA nos ensinam uma lição vital: as noções de controle e certeza estão se tornando obsoletas… [hoje,] não existe um único modelo de comportamento, modo de pensamento, ou método que ofereça uma resposta para todos nossos complexos problemas interconectados (Sardar, 2010)

Sem meios de prevenir contragolpes, ou consequências inesperadas ou mesmo contra produtivas, as agentes sociais de hoje precisam estar preparados para abrir mão do controle. Essa é uma guerra contra a timidez. A agente de 2012 precisa estar preparada para tomar decisões com informações incompletas, otimizando seus planos dentro dos limites do visível e conhecido. Ela entende o valor inerente do protótipo, do beta testing, da simulação e da interpretação. Estas são, nas palavras de Cascio, ferramentas e estratégias que empregam “repetição a serviço da complexidade, diversidade como meio de integração dinâmica em um ambiente em mudança” (Cascio, 2011). Igualmente, a gonzo futurista sabe quando não agir. Ela reconhece as diferenças entre se fazer de morta e se negar a agir. Ela deixa uma pegada discreta, e tem sempre uma mochila pronta para pegar a estrada.

A gonzo futurista saúda as possibilidades sociais de agir-em-conjunto-com-outros. Embora tenha o cuidado de evitar a dinâmica do pensamento de manada, ela reconhece a importância do projeto autônomo e limitado no tempo. Seu mundo, afinal, é o mundo do pós-autor. Apesar das promessas do superempoderamento de armar o indivíduo com ferramentas de potência dantes nunca vistas, de biotecnologia de garagem através de impressões 3D e drones autônomos, ‘não existe necessidade ou regra inevitável que o empoderamento individual será inclusivo, estendido ou igualmente distribuído ou dedicado ao bem coletivo’ (Sardar, 2010:4). A maneira mais efetiva de prevenir os cenários mais distópicos é identificando uma tribo-de-afinidade; sua comunidade-de-interesse pessoal. Como Montouri disse, “em tempos pós-normais, a criatividade terá uma ou duas surpresas guardadas para nós… [e] paradoxalmente talvez se torne normal, no sentido que não será mais o domínio de gênios solitários torturados (o que não é, por sinal), mas um processo de todos, acontecendo todos os dias, em todo lugar.’ (Montuori, 2011: 221-222).

Quando você agir, aja com coragem, livre do medo das consequências além do seu controle. Tente não perder energia nos detalhes.

4. CONCLUSÕES

Voltando ao mundo de 2012, Sardar ecoa Aveni em argumentar que ‘nosso impasse atual representa o fracasso da imaginação… [e a] subserviência da imaginação a ortodoxia’. (Sardar, 2010). Conforme nós nos aproximamos das margens de nossas bases de referência, ‘o que considerávamos como normal, convencional e ortodoxo simplesmente não funciona mais’. […] Nesse contexto, nossas melhores armas são imaginação, criatividade e compreensão da absoluta incerteza dos tempos em que nos encontramos. Aqui, um único painel do gibi XKCD que – por hora – faz parte de um dos pilares da minha arquitetura cognitiva:

’Você é curiosa e esperta e entediada, e tudo que vê é a escolha entre trabalhar duro e fazer corpo mole. Você perde tantas aventuras por ficar esperando montar um plano. Para encontrá-las olhe para as menores escolhas, que sejam interessantes. E lembre-se, você está sempre criando o futuro conforme caminha. ’ (Munroe, ‘Choices’: Parte 4)

Esse, talvez mais que qualquer outra coisa, seja o evangelho segundo a futurista gonzo.

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] culto à carga – taqui um podcast sobre o assunto.

[2] cães pavlovianos – Pavlov é aquele cientista russo que tocava uma campainha toda vez que boatava comida pros cachorros, uma vez que eles tivesse se acostumado a associar o som da campainha com serem alimentados, salivavam só de ouvir o barulho, mesmo que a comida não estivesse lá. O campo de estudo dele envolve condicionamento, sacou ?

[3] Saia pra fazer compras que tudo vai voltar ao normal –

[4] homem de palha – Os druidas galeses supostamente construíam esses imensos “homens de palha”, onde eles botavam umas pessoas dentro e depois incendiavam, em homenagem aos deuses. Esses relatos provavelmente são infundados e criados pelos gregos, na época que estavam em guerra com os galeses. No primeiro volume do Livros de Sangue, Clive Barker tem um conta que faz uma vaga referência a essa lenda. Nunca-jamais assista o filme de mesmo nome estrelado por Nicholas Cage.

[5] djinn – Segundo islâ, djinns são outra criação de Alá, irmão dos humanos, mas que vivem invisíveis entre nós… E é claro, existe a versão da cultura de massa ocidental da “pessoa engraçada que mora numa garrafa e me garante desejos”.

[6] névoa de guerra – Um conceito comum nos estudos de conflitos, já que os campos de batalha tendem a ser difíceis de se compreender e prever imediatamente.

[7] Título original do livro no idioma gringo: Pattern Recognitions

[8] fubar -FUBAR – “Fucked up beyond any recognition”, termo militar para definir situações que saem de controle de forma inesperada e drástica. Uma incurssão que deveria ser simples e segura e se caba com muitas baixas, por exemplo.

“A PALAVRA SUBVERSIVA ESCRITA” pelo prisioneiro anarquista Toby Shone

Publicado em 25/04/2024 por darknights

Contribuição do camarada anarquista Toby Shone da prisão de Garth (Reino Unido), para o debate “Thought and Action (“Pensiero e Azione”) – Repressive Attacks on the Anarchist Written Word” [1] organizado pelo Tattoo Circus em El Paso Occupato, Turin (Itália), de 09 a 10 de Março de 2024

A PALAVRA SUBVERSIVA ESCRITA

Queridos camaradas,

Aqui quem escreve é Toby Shone, anarquista preso na operação Adream, uma investigação antiterrorista mirando o projeto de contra informação 325. Estou ligando de uma prisão no nordeste da Inglaterra, é uma pena longa, em uma prisão de alta segurança, e é precioso que podemos roubar estes momentos.

Como vocês talvez já saibam, a Operação Adream foi uma ataque repressivo do estado do Reino Unido onde três moradias coletivas, a casa de uma família e um depósito foram invadidos pela polícia. Eu fui acusado de ser o administrador do 325.nostate, o que me rendeu quatro acusações de terrorismo: seção 2 (distribuição de publicações terroristas), seção 15 (financiar terrorismo) e duas instâncias de seção 58 (possessão de informação com possibilidade de ser útil a propósitos de terrorismo). Também fui acusado de várias ações diretas e pertencer a FAI, ELF e ALF [2]. Centenas de policiais se envolveram nas invasões simultâneas e apesar disso, apenas um dos camaradas foi brevemente detido e em seguida liberado por falta de evidências. Está nítido, por meio das condições de prisão em que me encontro e do monitoramento constante, que uma investigação ativa continua, com rastreios e vigilância de companheiros do lado de fora, além da vigilância de espaços sociais anarquistas.

Por que isso está acontecendo? É porque o anarquismo é uma ameaça a ordem tecnocrática em vigor, nossos grupos de ação direta têm uma realidade palpável, mesmo que mínima, em comparação com a tarefa a ser realizada, e a constelação de contra informação continua a brilhar nas noites escuras e se tornam mais fáceis de se usar e navegar. Publicações anarquistas são vistas como uma empreitada inaceitável pela polícia e serviços de inteligência. As reportagens sobre ações diretas anarquistas, lutas sociais e revoltas, por formarem uma narrativa de subversão, são indiscutivelmente alvo de tanta repressão quanto a dirigida a aqueles que realizam os atos relatados. É uma estratégia que existe há muito tempo. No caso da Operação Adream, a polícia estava assustada pela retórica explicitamente anarco insurrecionalista e anti-civilização combinada com a distribuição de publicações eletrônicas e em papel. Durante os interrogatórios uma das principais preocupações dos detetives era sobre o propósito das publicações anarquistas em papel. Todos os documentos eletrônicos têm uma assinatura digital forense conhecida como valor hash, que pode ser rastreado através da internet e dispositivos mesmo se deletado. As publicações em papel, por outro lado, não podem ser rastreadas à medida que são distribuídas; uma investigação sobre elas requer material forense e um inquérito policial tradicional: o que demanda mais recursos, dinheiro e pessoal e, especialmente, as iniciativas de publicação clandestina que podem ter um cronograma irregular de publicação e métodos “informais” de distribuição.

Isso nos leva de volta ao propósito das publicações anarquistas: cópias de papel existem e têm o poder, conforme são passadas de mão em mão, de terem uma realidade material impactante. Eles também acumulam traços forenses, os livros, as revistas, e panfletos sobre os quais estamos falando, ideias perigosas, que podem inspirar nossas vidas. O tempo de duração delas é diferente das publicações digitais, e nós podemos perceber isso. Com nossas publicações, mesmo se estiverem condenadas a estar em bibliotecas universitárias, livrarias convencionais, ou pior, museus e galerias de arte, elas sempre vão se manter controversas ou mesmo ilegais em alguns casos. O propósito delas é a guerra social e a destruição do Estado. Nos arquivos da investigação da Operação Adream, dúzias de publicações anarquistas foram citadas, muitas das quais podemos tomar por garantido, são distribuídas livremente em feiras anarquistas, okupas, centros sociais e bancas de eventos. Ainda assim, para a polícia, para a unidade especial e promotores, essas publicações são parte de uma conspiração amorfa que tem como objetivo a derrubada das instituições, o que é correto, mas não exatamente da forma perversa como eles desejam interpretar. Explicando: nós comumente somos confrontados pelo modelo repressivo que atribui o papel de “liderança” a teóricos e escritores. Eles são acusados de dar ordens e instruções e então as células e cadres que executam essas ordens. Eu não preciso dizer que isso é uma ofensa à prática anarquista, mas essa foi nitidamente uma linha de questionamento que a divisão de contra terrorismo me apresentou. A posse de uma revista 325 implica afiliação a uma organização? Essa organização executa as ações? E essa organização é parte de uma infraestrutura terrorista maior? Foi esse tipo de perguntas que me fizeram. Com essas estratégias, marionetes da repressão são formadas, organizadas em estruturas hierárquicas que refletem suas mentes febris. Então, nesses interrogatórios os investigadores focaram alguns momentos em me perguntar sobre funções administrativas, fluxos de tomada de decisão, números estatísticos, demografias alvo, pesquisa e linguística, ou traduções. Sobre o último, os policiais queriam saber quem era responsável pelas traduções, como eles se organizavam, e quem decidia oquê seria traduzido.

A que ponto o nível de repressão é igual ao das ações? Para mim, a resposta é óbvia. O nível de repressão atual é muito maior do que a repressão à ação direta anarquista. É da natureza da repressão do Estado buscar ser esmagadora e nossa luta permanece sendo apenas uma minoria ativa. No Reino Unido o silêncio e a falta de ação denota a morte da vida social. Mas não foi sempre assim. E o futuro permanece a ser escrito. É por isso que a infiltração policial continuará a tentar prevenir rupturas e ataques individuais. É impossível separar a Operação Adream das consequências de mais de uma década de ação direta anarquista e revoltas sociais em Bristol. Embora estas coisas estejam em baixa no momento, não significa que vão continuar assim. O anarquismo continua parte do tecido social na região sudeste. E onde os relatos, comunicados e análises são publicados, vão permanecer como prioridade na lista de alvos do Estado. As centenas de milhares de editoras ao redor do mundo, são parte da rede do anarquismo contemporâneo, contribuindo para a nossa habilidade de nos mantermos relevantes e expandindo.

Grandes mudanças estão em andamento na sociedade, e multidões descontentes têm a possibilidade de formar uma necessária resistência vital. A nova crítica anarquista à alta tecnologia é citada por várias agências de inteligência, de Estados e privadas, como tendo a habilidade de infectar a população com uma raiva profunda ao futuro digital. Esse futuro que está sendo planejado por patrões é um vasto estado de vigilância que é parte de uma matriz cibernética, onde máquinas estão tomando o lugar de humanos, e a inteligência artificial se inseriu em todos os lugares possíveis. Da mesma forma, podemos ver que os próprios seres humanos têm se tornado mais como máquinas, e seu ambiente está degradado e poluído. Cada vez mais podemos falar sobre a realidade do total fracasso de inúmeros sistemas sociais, dado o colapso ecológico e econômico e a mudança pós-industrial. Grandes territórios mudificados por inundações, secas e tempestades intensas. Desafios sem precedentes se apresentam rapidamente com efeitos terríveis em pontos críticos para a agricultura, conflitos geopolíticos e mais. Nossas publicações e redes de contra-informação são uma forma direta e na qual podemos comunicar nossas análises e métodos de organização. A repressão conhece o perigo do contágio dessa mensagem, e a narrativa que leva. O fato de ilegalizarem nossas publicações e tentarem impor sentenças exemplares é apenas um meio e um fim para eles. E é isso que sempre enfrentamos, se somos efetivos, enfrentamos repressão, morte. É isso que tantos camaradas enfrentam ao redor do mundo agora mesmo. Essencialmente, alguns de nós tem vivido sob vigilância e investigação por tanto tempo, que tudo que podemos fazer foi considerado crime, mesmo existir. Vale a pena escrever sobre isso e quando nós lemos e compreendemos mais sobre oque outros estão confrontando e como, nós podemos conquistar nosso poder.

Por último, quero falar sobre a censura que estou enfrentando aqui. Já que tem sido característica da minha prisão e também é parte do tópico que estamos discutindo. Muitos camaradas encontram problemas com suas correspondências e recebimento de publicações. Isso não é incomum. Por isso é válido dizer que tive meu acesso negado à maioria da minha correspondência e livros que me foram enviados. Mesmo que eu esteja recebendo negativas pela administração atual da prisão. Essa é a força dos nossos boletins, nossos livros, nossas cartas trocadas com camaradas, elas assustam o inimigo. No meu caso, também tendo negado acesso a documentos e livros socialistas, marxistas autônomos, e comunistas, que me foram enviados por pessoas da esquerda radical em solidariedade, assim como livros sobre história negra, justiça transformativa, e abolição das prisões. Os pouquíssimos livros anarquistas que consegui receber guardo próximos do meu coração, aqui na minha cela. A liberdade é escrita com tinta e nosso sangue, como sempre foi e sempre vai ser. Dê valor a seus livros, seus jornais, suas cartas enviadas e recebidas, a memória combativa persiste, e vamos passá-la para cada nova geração num esforço que não é solitário. Eu vou terminar aqui e por isso agradeço por sua energia e sua atenção, um forte abraço para todos vocês, especialmente os que estão sobre repressão pela palavra escrita. Das palavras surgem os atos, e esse é o tópico que encontramos hoje. Amor e ódio, obrigado.

Toby,

Prisão de Garth, 4 de Março de 2024

[1] “Thought and Action (“Pensiero e Azione”) – Repressive Attacks on the Anarchist Written Word”; Pensamento e Ação – Ataques Repressivos à Palavra Escrita Anarquista

[2] FAI, ELF e ALF; respectivamente Federação Anarquista Informal; Earth Liberation Front; e Animal Liberation Front

nossa campanha é a vida

[tradução do capítulo 13 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

Então, nós queremos mudar o mundo. Por onde começar? Um emaranhado de problemas e campanhas nos cercam por todos os lados, cada uma delas exigido atenção. Deveríamos lutar para preservar as últimas das florestas ancestrais, ajudar a comunidade empobrecida no fim da nossa rua, advogar pelos sem-teto, lutar contra o supremacismo branco, combater a violência policial, fechar locais de trabalho precário, ajudar o Movimento dos Sem Terra no Brasil? Os problemas parecem grandes de mais para uma só pessoa ser capaz de compreender. O mundo sofre de mais injustiça e dor que qualquer pessoa sozinha poderia sonhar em curar sozinha. Nós temos que fazer absolutamente tudo e ainda mais.

Ao nosso redor, há uma gama de ideologias oferecendo respostas prontas, seja no mais recente séquito dissidente do comunismo ou a visão de mundo Hare Krishna. Para os de nós que vem “mudando o mundo” por muitos anos, é fácil se tornar cínico sobre o supermercado de ideologias que os ativistas modernos podem comprar. Nós precisamos uma maneira de salvar nosso mundo enquanto evitamos respostas fáceis e falsos atalhos.

Focar em uma só campanha é uma via que comumente impede o avanço de ativistas. Cada campanha tenta se vender como a próxima e crucial batalha contra Os De Cima, onde objetivos finalmente serão alcançados. O inimigo de uma campanha específica é comumente apresentado como o real mestre dos títeres por de trás de todos os males do mundo, e os inimigos de todas as outras campanhas em competição, nada mais que fantoches manipulados. Cada campanha compete por membros dentro de um conjunto limitado de ativistas, tomando o tempo não só de outras causas mas da via cotidiana do ativista, levando a exaustão. Cada campanha busca que a compremos; poderia haver uma maneira de lutar por mudança sem tratar o ativismo como um mercado para justiça? Foco obsessivo em campanhas de uma só causa podem levar a acabarmos tratando causas, e uns aos outros, como objetos com um valor específico para expor ou consumir. Praticamente toda campanha é conectada e necessária, e nós precisamos vencer todas para de fato conseguirmos alcançar qualquer mudança; as vencendo de uma forma que o governo e as corporações jamais consigam se preparar. A anarquia tem flexibilidade o suficiente para superar os problemas tradicionais do ativismo, focando na revolução não como mais uma causa mas uma filosofia de vida. Essa filosofia é concreta como um tijolo arremessado em uma janela ou flores crescendo em jardins. Ao tornar nossas vias cotidianas revolucionárias, nós destruímos a separação artificial entre ativismo e a vida comum. Por que nos contentarmos com camaradas e colegas ativistas se podemos ter amigos e amantes?

Você Não Pode Explodir uma Ecologia Social

[tradução do capítulo 12 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

A anarquia se baseia na premissa que líderes não são nem necessários, nem desejáveis, ainda assim essa máxima tem tido pouco impacto na ala autoritária do movimento antiautoritário! Certos indivíduos (quase sempre homens velhos barbudos) desenvolveram cultos de seguidores que seguiram em um contexto histórico completamente diferente, muito depois da morte deles. É triste que muitos anarquistas se identifiquem com um ou outro clique, leiam somente certas revistas, tentam em vão convencer a todos que sua versão particular de anarco-purismo é o Único Caminho Correto™. Se nos insultamos mutuamente por causa de questões teóricas grandiosas, é claro que menos pessoas fora do círculo anarquista levarão nossas ideias a sério. Anarquistas não deveriam ler uns aos outros como competidores em algum campo cultural ou político, mas como potenciais amigos e camaradas desesperadamente precisando de pessoas com diferentes ideias e estratégias.

Nós não somos perfeitos, e assim como qualquer um escapando de uma experiência traumática como a sociedade ocidental moderna, a maioria de nós ainda carrega maus hábitos como dogmatismo, sexismo, e paternalismo. Um pouco de paciência entre nós, faria toda diferença. A última coisa com que nossas comunidades deveriam se parecer é com partidos políticos com expurgos e jogos de poder; melhor que nos tornemos uma tribo que cuida dos seus. Sobrevivência seja nas savanas da África ou nos shopping centers dos Estado Unidos, significa cuidar uns dos outros. Antes de nos obcecarmos sobre entrarmos em contato com organizações externas, as massas despolitizadas da classe trabalhadora, ou qualquer um fora das nossas comunidades, nós devemos primeiro aprender a nos relacionarmos uns com os outros baseados em solidariedade, apoio mútuo, compreensão e respeito. A empatia usada quando cuidamos uns dos outros é a ferramenta mais criativa que temos para nos envolvermos com o resto do mundo.

Picuinhas intelectuais nos dizem que essas facções competindo jamais poderiam ter um debate tranquilo enquanto tomam café, muito menos trabalharem juntos em um projeto prático, certo? Entretanto, trabalhar em projetos em comum é exatamente o que anarquistas de diferentes históricos mais têm feito. Nós não precisamos de unidade teórica, nós precisamos de solidariedade prática. Uma vez que nós reconheçamos e abracemos nossas diferenças coletivas, seremos capazes de espalhar a prática da anarquia por nossas comunidades e pelo mundo. Ir além das posições políticas caricatas (coloque uma faixa verde na sua estrela negra, e de repente o anarquismo está reduzido a salvar árvores; coloque uma faixa vermelha na sua estrela negra, e o anarquismo agora é apenas sobre guerra de classes) é absolutamente vital. Sectarismo leva diretamente ao autoritarismo, assim que você se identifica com o anarco-séquito correto, todas outras pessoas estão erradas. O fundador da ideologia correta inevitavelmente ganha mais poder do que seus seguidores, e o séquito reúne suas forças para travar uma guerra santa contra todas as outras espécies do arco-íris anarquista. Não precisamos repetir os erros de outros grupos de esquerda. É muito mais fácil para nós atacarmos uns aos outros do que destruir o Estado. Pessoas têm diferentes visões de libertação e qualquer sociedade anarquista terá uma diversidade de táticas e projetos. Hoje, nós precisamos de sindicatos anarquistas radicais capazes de pararem as máquinas, escritores radicais que inspirem e espalhem conhecimento, militantes para lutar contra os policiais nas ruas, e tree-sitter para salvar o que sobrou da natureza: em outras palavras, nós precisamos de mais anarquia!

Às Portas da Comunidade Anarquista

[tradução do capítulo 11 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

Às Portas da Comunidade Anarquista

Desde sua infância, o anarquismo (como muitos movimentos sociais internacionais) tem sido definido por suas políticas. Nenhum problema até aí, nós somos seres políticos. Anarquistas possuem uma lista bem definida de inimigos: o Estado, o capitalismo, e as hierarquias. Nós temos uma lista igualmente bem definida de desejos: apoio mútuo, autonomia, e descentralização. Enquanto fazemos apostas de que a anarquia vai oferecer vidas melhores que a dos dinossauros, há pouco impedindo o anarquismo de se transformar em outra ortodoxia: tão ruim quanto o Comunismo, Socialismo, Liberalismo, Reformismo, Capitalismo, Mormonismo, ou qualquer outro “ismo”. Há muito, desenvolvimentos na América do Norte têm mostrado que a uma tendência específica ou tipo restrito de políticas anarquistas não são tão importantes quanto as comunidades compartilhadas que estamos criando por conta destas políticas. Essas comunidades se mantêm unidas através de práticas, táticas, e cultura. Nós não precisamos ser uma monocultura. Invés disso, pense no anarquismo como uma ecologia de culturas (como micróbios em uma placa petri ou como uma manifestação nas ruas) algo que demanda e floresce na diversidade.

Como qualquer grupo de amigos que trabalham e vivem juntos, nós estamos desenvolvendo uma cultura compartilhada apesar das nossas origens diversas. Cada grupo de anarquistas (incluindo pessoas que vivem sob princípios anarquistas sem nunca terem aberto um livro de Kropotkin, Emma, ou CrimethInc.) cria suas próprias práticas e cultura.

Nós estamos fartos de qualquer nova ortodoxia, apesar de ser isso que as pessoas criadas no Ocidente são treinadas para desejarem: a Próxima Grande Parada, seja um autor, programa de TV, movimento, ou qualquer outra coisa que não seja o que estamos fazendo com nossas vidas. Como a cultura pode ser bastante fluida, transferível, e mutável, isso tem funcionado em nossa vantagem. Ao invés da anarquia de cima, ditada pela mídia ou especialistas, existem dúzias de versões da anarquia competindo, divergindo e mutando. Essa é uma construção fundamentalmente boa. A maioria dos anarquistas é feliz com essa fluidez e diversidade. A monocultura dos dinossauros pode ser rejeitada em favor das vibrantes, anarquias folclóricas.

Comunidade é algo que os anarquistas compreendem e aspiram. Ainda que, o que essas comunidades deveriam fazer tem sido a causa de muitos debates ácidos. Dependendo para quem você perguntar pode ser uma estação de rádio pirata que chegue até o vizinho, travar combate em guerrilhas urbanas, uma casa coletiva, incendiar hoteis de luxo, ou uma manifestação gigante. Essas diferenças levam a argumentos banais que raramente ajudam as culturas ou comunidades pelas quais os críticos anseiam. Invés de gastar tempo se exibindo no pódio, todos nós podemos passar mais do nosso tempo criando algo que se pareça com sociedades anarquistas dentro da cultura transtornada na qual vivemos hoje! Essas comunidades de resistência estão acontecendo em todo mundo através da criação de zonas autônomas semi-permanentes como infoshops e hortas comunitárias, clínicas grátis e fazendas orgânicas, casas coletivas, e espaços de performance. Nós vemos lampejos de um mundo melhor em zonas autônomas temporárias como mobilizações e convergências, okupas e tree-sits [NT1], festas de rua e bocas-livres. Por que criar comunidade é uma trabalho duro, nosso trabalho é melhor aplicado manifestando e expressando nossas paixões nessas arenas, não meramente falando sobre elas.


[NT1] “tree sits” – ato de desobediência civil onde a manifestante se mantém em cima de uma árvore, arriscando a própria segurança física para desmotivar a derrubada de uma árvore específica. 

Zonas autônomas são manifestações físicas de ideias que cresceram tanto nos últimos anos, mesmo que elas pareçam ser pequenas fachadas de lojas, bibliotecas em porões, e galpões espalhados ao redor da América do Norte. Esses são os laboratórios e oficinas da anarquia. Conforme nossas redes se expandem, também cresce nossa habilidade de falar uns com os outros. Nossa capacidade de comunicação tem sido extremamente bem sucedida e prolífica: música, escrita, e performance. Dúzias de jornais anarquistas, milhares de zines, e um punhado de livros têm criado um meio de expressão e discórdia. O que temos hoje é mínimo comparado com o maquinário da mídia capitalista, mas nós devemos tentar competir com eles. Rejeição a massa não quer dizer que os anarquistas estão condenados a serem poucos, uma minoria irrelevante para o resto da nossa existência. É possível que centenas de milhares de coletivos e grupos de afinidade trabalhem juntos em solidariedade e respeito por suas diferenças.

O Reddit vai licenciar seus dados para treinar LLMs, por isso criamos uma extensão do Firefox que substitui seus comentários com qualquer texto (que não tenha direitos autorais)

publicado originalmente em The Luddite.

O Reddit vai passar a ter ações na bolsa de valores. Eles vêm se preparando para isso há um tempo, espremendo lucros da plataforma de todos os modos possíveis, como aumentar absurdamente os preços de aplicativos desenvolvidos por terceiros. Mais recentemente, eles assinaram um contrato com o Google para licenciar seu conteúdo para treinar as LLMs do Google.

Para celebrar esta fortuita ocasião, nós criamos uma extensão no Firefox que vai substituir todos os seus comentários (mais antigos que alguns dias) com qualquer texto que você escolher. Você pode escolher qualquer texto que quiser, mas por favor, não escolha um texto que tenha direitos autorias. O New York Times está atualmente processando a OpenAI por treinar o ChatGPT com material com seus de direitos autorais. Os dados do Reddit são especialmente valiosos, uma vez que não estão sujeitos a esse tipo de restrições, então, seria trágico se usuários decidissem misturar textos que possuem direitos autorias no meio deste rico corpus de dados de alta qualidade.

Aqui está o link da extensão novamente. A todos nossos amigos no Reddit, nós desejamos a vocês todo o sucesso que merecem!

Orgulho, Purismo e Projetos

[tradução do capítulo 10 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

Orgulho anárquico é algo que vale a pena de se promover em nossos projetos e nossas vidas. É uma forma de transparência, permite que aqueles com que interagimos saibam, em resumo, no que acreditamos, e como nos comportamos. Em suma, é honesto. Purismo anárquico é a sombra do orgulho anárquico. O purismo exige que todos que trabalham juntos devem compartilhar as mesmas políticas, agendas, e comportamentos; não apenas por um certo período de tempo ou projeto, mas por todas suas vidas. Isso cria uma tendência de purismo político disfuncional e desnecessária que pode ferir comunidades e criar debates absurdos sobre “quem é mais anarquista”. Esses debates devastaram as comunidades veganas e de direitos dos animais, sem mencionar ideologias dinossauras como o cristianismo. A diferença entre orgulho e purismo é sutil mas extraordinariamente importante Essas diferenças afetam como nós trabalhamos com outros e com quem escolhemos passar tempo e interagir.

Anarco-orgulho nos permite trabalhar com indivíduos que apreciam, se não compartilham, nossos princípios organizacionais, visões, e objetivos. Permite que todos tomem decisões bem informadas, seja para organizarmos uma festa juntos ou irmos às ruas juntos. Ainda assim, muitas pessoas que são anarquistas têm receio de comunicar esse fato para outras. Elas temem que o anarco-orgulho aliene seus possíveis aliados. Infelizmente, manter nossas motivações em segredo é paternalista e condescendente, e pode ser uma fácil racionalização para desonestidade. Esconder nossa identidade como anarquistas supõe que outras pessoas não são inteligentes ou experientes o suficiente para optar em trabalhar conosco baseado em nossas políticas. Sinceridade política permite a todos grupos compartilharem seus verdadeiros objetivos e interesses. Sinceridade previne ressentimento em alianças e parcerias e maiores desentendimentos. Se grupos ou indivíduos escolhem não trabalhar conosco, pois somos anarquistas, devemos respeitar a decisão. Isso é melhor do que tentar enganá-los e revelar isso “depois da Revolução” ou ação de rua, conforme o caso. Lutar pela construção franca e o diálogo aberto com grupos e indivíduos com os quais desejamos trabalhar é nossa melhor chance de criar solidariedade.

Célula, Clique, ou Grupo de Afinidade?

[tradução do capítulo 09 do livro Anarchy in the Age of Dinosaurs, por Curious George Brigade]

O termo “grupo de afinidade” é frequentemente utilizado em círculos anarquistas. Entretanto, existem alguns mal entendidos da natureza exata dos grupos de afinidade e como nós podemos usá-los criar mudanças radicais. Estruturas de grupos de afinidade compartilham algumas características óbvias com células e cliques, apesar deles existirem em diferentes contextos. Pode ser bastante difícil para um observador exterior determinar se um grupo específico de pessoas é uma célula, clique ou um grupo de afinidade, e isso sem dúvidas leva a confusões. Todos os três são grupos compostos por uns poucos indivíduos, digamos, de três a nove, que trabalham juntos, apoiam uns aos outros, e tem uma estrutura tipicamente fechada para pessoas de fora. Dependendo de seus objetivos, eles podem se engajar em uma multiplicidade de projetos, indo do cotidiano ao revolucionário, mas similaridades acabam aí.

Uma célula é parte de uma organização maior ou um movimento com uma política ideológica unificada. Geralmente células recebem instruções de uma comunidade maior, da qual fazem parte. Geralmente, células são orientadas pelo “trabalho”, e não entendem a socialização como um objetivo primário. Células específicas são conectadas umas com as outras (da mesma organização) por uma visão compartilhada, apesar de empregarem uma vasta gama de táticas.

Um clique, por outro lado, é um grupo de pessoas que isolaram a si mesmos de uma comunidade ou organização maior. Cliques sociais são comuns; bons exemplos podem ser encontrados em qualquer escola de ensino médio em grupos como esportistas, preppies, ou nerds. Os cliques tendem a ser isolados e preferirem criar limites rígidos entre eles mesmos e o resto da comunidade com a qual estão associados. Cliques raramente tem um foco em trabalho ou projetos.

Grupos de afinidade são coletivos autônomos de indivíduos que compartilham uma visão particular. Apesar da visão não necessariamente ser idêntica entre seus membros, um grupo de afinidade compartilha certos valores e expectativas comuns. Grupos de afinidade surgem de comunidades maiores, sejam eles ambientalistas em uma bio região específica ou membros de um grupo de hip-hop que se apresentam juntos. Dois grupos de afinidade surgindo da mesma comunidade podem ter interesses, táticas e perspectivas bastante diferentes. Essa variedade é incomum entre células. Grupos de afinidade mantém uma forte conexão com suas comunidades natais e geralmente buscam formas de se conectar com outros grupos de afinidade e organizações naquela comunidade. Dessa forma, se diferem dos cliques que buscam separar. Um grupo de afinidade também pode trabalhar de perto com outros grupos fora de sua comunidade original.

Grupos de afinidade têm a vantagem política de serem capazes de criar conexões que unem diversas comunidades. Apesar de grupos de afinidade geralmente serem grupos fechados (um criticismo comumente trazido pelos dinossauros), a maioria dos anarquistas se sentem confortáveis sendo parte de múltiplos grupos de afinidade. Essas interconexões pessoais entre grupos de afinidade podem promover uma maior afinidade entre diversas comunidades e gerar solidariedade significativa. Esse é o efeito da “polinização cruzada”. Por exemplo, um membro de um grupo de afinidade de ação direta que também é membro de um coletivo de mídia feminista podem criar oportunidades para ambos os grupos. O coletivo de mídia pode se tornar mais militante enquanto o grupo de ação direta pode se tornar mais aberto a práticas e ideias feministas. Invés de tentar fundir ação direta, mídia, e feminismo militante em um desajeitado super-grupo, a ativista pode seguir buscando seus múltiplos interesses em dois grupos que focam em seus principais interesses. Paradoxalmente, esses grupos de afinidade fechados oferecem um local seguro e acolhedor para afinidades mais amplas e desenvolverem, assim criando uma rede mais ampla de apoio mútuo, compreensão e apoio.

Enquanto é importante compreender as limitações contextuais dos modelos de célula e clique, é um erro descartar os grupos de afinidade por serem elitistas ou fechados. Grupos de afinidade oferecem imensas possibilidades por aumentar o número de conexões entre comunidades, enquanto oferecem um ambiente acolhedor para que as pessoas busquem seus interesses e afinidades particulares.

Oque é anarco-transhumanismo ?

publicado originalmente por William Gillis, em  06/01/2012, fonte: The Anarchist Library

Anarco-Transhumanismo é o entendimento de que a liberdade social está inerentemente ligada com a liberdade material, e que liberdades são incontornavelmente uma questão de expandir sua capacidade e oportunidades de engajar com o mundo ao nosso redor. É a realização que nossa resistência contra aquelas forças sociais que nos subjugaram e limitaram não é nada mais que parte do espectro de esforços para expandir a agência humana; para facilitar nossas investigações e criatividade.

Isso significa não apenas estar livre das limitações arbitrárias de nossos corpos possam impor, mas livre para moldar o mundo ao nosso redor e aprofundar o potencial de nossas conexões entre nós através dele.

Significa que as ferramentas que nós usamos deveriam ser abertamente conhecidas e infinitamente customizáveis; isso significa corpos que não estão presos em processos sobre os quais não temos agência. Saber que o desejo por escolha por trás do controle de natalidade, pela regeneração de membros e mudança de sexo é o mesmo desejo que organiza trabalhadores e incendeia prisões. É a luta para se viver livre… e por poder fazer isso por mais um ano, mais uma década, mais um século. Significa não apenas transcender as restrições de gênero, mas da genética e todas as experiências humanas anteriores. Significa lutar para que nos seja permitida a plena realização de quem e do que queremos ser, quando e onde quisermos.

Significa desafiar e alterar as condições que de outra forma nos governariam. Significa que quando as ferramentas para melhorar a nós mesmos existem, nós devemos usá-las; que ninguém deveria passar fome quando essa escassez pode ser eliminada. Significa engajar de forma vigilante com a natureza, sem a oprimir ou render-se a ela. É o conhecimento de que a vitória da classe trabalhadora será livre somente quando cada trabalhador individualmente deter os meios de produção; capaz de fabricar toda e qualquer coisa por si mesmo. É o engajamento proativo com as condições ambientais que forçam hierarquias e o inescapável coletivismo. Significa libertar nossa sociedade de hierarquias de paisagens bidimensionais, mover nossas infraestruturas destrutivas para fora da nossa biosfera e eventualmente abandonar a civilização e tomar nosso lugar como caçadores e coletores entre as estrelas.

Significa criptografia; canais inquebráveis de comunicação privada adicionadas sobres uma inquebrável colmeia de ideias e conhecimentos. Isso também significa a abolição da privacidade pública; a criação de um mundo onde as ações que tomamos um com os outros seja compartilhável e verificável instantaneamente. E finalmente será a liberdade de ultrapassar os limites de banda da nossa linguagem e nos conectarmos mais e mais diretamente um com os outros; para fundirmos mentes e transcender subjetividades individuais como desejado.

Anarco-Transhumanismo é todas essas coisas e nenhuma delas.