Arquipélago

Afinidade, organização informal e projetos insurrecionais anônimos

publicado originalmente em Anarchist Library;

Por que voltar a questões da afinidade e organização informal? Certamente não é por nos faltarem tentativas de explorar e aprofundar esses aspectos do anarquismo, nem por que as discussões passadas, assim como as de hoje, não sejam de alguma forma inspirada por elas, e também não por uma ausência de textos – verdade seja dita, a maioria em outros idiomas – que abordam essas questões de forma mais dinâmica. No entanto, certos conceitos exigem um permanente esforço analítico e crítico, para que não percam seu significado por serem frequentemente usados e repetidos. De outro modo, nossas ideias arriscam se tornarem lugar-comum, alguma “evidência”, um solo fértil para o jogo idiota da competição de identidades, onde a reflexão crítica se torna impossível. Também acontece da escolha da afinidade para alguns se torna rapidamente descartado como se fosse sobre um relacionamento empoleirado em suas próprias ideias, um relacionamento que não permitiria um contato com a realidade e nem com camaradas. Enquanto outros balançam isso pra todo o lado, como uma bandeira, como algum tipo de slogan – e como todos os slogans, geralmente é o seu verdadeiro significado, profundo e propulsivo, que se torna sua primeira vítima.

Nenhuma atividade humana é possível sem organização, ao menos, se considerarmo como “organização” a coordenação de esforços físicos e mentais considerados necessários para alcançar um objetivo. Desta definição podemos deduzir um importante aspecto, que é frequentemente esquecido: organização é funcional, ela é voltada para a realização de algo, em direção a ação no sentido mais amplo da palavra. Os que hoje imploram que todos simplesmente se organizem, na ausência de objetivos nítidos e enquanto esperando que do primeiro momento da organização todo resto se desenvolveria automaticamente, eles colocam o ato de se organizar em um pedestal como um fim em si mesmo. No melhor dos casos, talvez eles tenham a esperança que daí virá uma perspectiva, uma perspectiva que eles não são capazes de imaginar por si mesmos ou mesmo desenhar um esboço, mas que se tornaria possível e palpável somente dentro de algum tipo de coletivo e ambiente organizado. Nada poderia ser menos verdadeiro. Uma organização é frutífera quando é nutrida, não por uma presença quantitativa banal, mas por indivíduos que a usam para realizar um objetivo em comum. Em outras palavras, é inútil acreditar que, apenas por nos auto-organizarmos, as questões de como, o que, onde e porque lutar serão resolvidas como que pela mágica do coletivo. No melhor dos casos – ou no pior, dependendo do ponto de vista – talvez alguém possa encontrar vagão para embarcar, um vagão puxado por outras pessoas, e simplesmente ficar confortável na desconfortável posição de seguidor.

Então, é só uma questão de tempo ate que alguém, insatisfeito e enojado, rompa com essa organização.

Organização é portanto, subordinada ao que se quer fazer. Como anarquistas, nós também precisamos considerar os laços diretos que precisam existir entre o que se quer fazer, o ideal pelo qual se luta e a forma com que se chega a ele. Apesar dos atuais disfarces e jogos de palavas, em meandros mais ou menos marxistas, partidos continuam sendo considerados meios adequados para se combater partidos políticos. Nós continuamos vendo-os hoje, repetindo a afirmação política das forças reprodutivas (em tempos em que a escala do desastre industrial está bem diante de nosso olhos) como um caminho para dar fim aos relacionamentos capitalistas. Alguns querem tomar medidas para inviabilizar todas as outras medidas. Anarquistas não tem nada a ver com esse tipo de truque de mágica, para eles os fins e os meios coincidem. Autoridade não pode ser combatida com formas autoritárias de organização. Aqueles que passam seu tempo analisando e desmontando as minúcias metafísicas, e nelas encontram argumentos afirmativos contra o uso da violência, um álibi ou uma capitulação para anarquistas, demonstram a partir disso, o profundo desejo por ordem e harmonia. Toda relação humana é conflitual, o que não significa que ser necessariamente autoritária. Falar de tais questões em termos absolutos é certamente difícil, o que não muda o fato que a tensão em direção a coerência é uma necessidade vital.

Se hoje pensamos que afinidade e grupos de afinidade são a forma mais adequada de luta e intervenção anarquista na conflitualidade anarquista, é porque tal consideração está intimamente ligada a como concebemos essa luta e essa intervenção. De fato, existem duas estradas para encarar esta questão, estradas que não são diametralmente opostas, mas que também não coincidem totalmente. Por um lado, há uma necessidade não-negociável por coerência. Daí vem a questão da medida de certas formas organizativas anarquistas (pegando por exemplo as organizações de síntese com programas, algumas declarações de princípios e alguns congressos como federações anarquistas ou estruturas anarcossindicalistas) respondem a nossa ideia de anarquismo. Por outro lado, há a questão do quão adequadas certas estruturas organizacionais seriam. Essa adequação põe a questão mais no campo das condições históricas, dos objetivos que se querem atingir (e portanto, da forma organizacional que é considerada mais apta a isso), de análises de situações sociais e econômicas… Para as grandes federações nós teríamos preferido, também em outros tempos, pequenos grupos que se movem com autonomia e agilidade, mas no nível adequado para a situação, com grande dificuldade pode-se excluir a priori em certas condições, a escolha de uma organização anarquista combativa, específica e federada, de uma constelação de guerrilhas… podem (ou melhor, pode vir a) responder certas necessidades.

Nós acreditamos que contribuir para rupturas insurrecionais e as apronfundar é hoje, a intervenção anarquista mais adequada para combater a dominação. Por rupturas insurrecionais nós queremos dizer rupturas intencionais, mesmo que temporárias, no tempo e espaço da dominação: portanto uma ruptura necessariamente violenta. Apesar de tais rupturas também terem um aspecto quantitativo (elas são fenômenos sociais que não podem ser reduzidos a uma ação aleatória de um punhado de revolucionários), elas são direcionadas a qualidade da confronto. Elas miram contra estruturas e relações de poder, elas rompem com o tempo e espaço da dominação e permitem, através das experiências e métodos de auto-organização e ação direta, questionar novamente e atacar mais aspectos da dominação. Em suma, as rupturas insurrecionais nos parecem necessárias na estrada em direção a transformação revolucionária da realidade.

De tudo isso, logicamente surge a questão de saber como anarquistas podem se auto-organizar para contribuir com tal ruptura. Sem desistir de difundir as sempre importantes ideias anarquistas, de acordo conosco, hoje, não é sobre nos reunir o maior número de pessoas ao redor do anarquismo, custe o que custar. Em outras palavras, nós não acreditamos que precisamos de organizações anarquistas fortes e atrativas, capazes de atrair os explorados e excluídos, como um prelúdio quantitativo para essas organizações que em troca (na hora certa) nos darão o sinal para a insurreição. Além disso, nós acreditamos que é impensável, nos dias de hoje, que rupturas insurrecionais possam começar a partir de organizações que defendem os interesses de um grupo social em específico, começando com, por exemplo, formas mais ou menos anarcossindicalistas. A integração de tais organizações dentro da manutenção democrática, de fato responde perfeitamente a economia capitalista contemporânea; é essa integração que tornou impossível potencialmente cruzarmos de uma posição defensiva para uma ofensiva. Finalmente, nos parece impossível que hoje uma “conspiração” forte fosse capaz, através de diferentes operações cirúrgicas, fazer a dominação tremer e arrastar os explorados em uma aventura insurrecional; para além das objeções que podem ser feitas contra essa forma de ver as coisas. Em contextos históricos onde o poder era muito centralizado, como na Rússia czarista, ainda se podia imaginar a possibilidade de um ataque direto contra o coração (neste caso, o assassinato do czar) como um prelúdio para uma revolta generalizada. Num contexto histórico de poder descentralizado como o que conhecemos, a questão não pode ser sobre atacar o coração, supondo um cenário onde um tiro bem-dado, poderia chacoalhar as bases da dominação (o que obviamente não diminui em nada a validade de um tiro bem-dado) Portanto, outros caminhos devem ser explorados.

Afinidade e grupo de afinidade

Diante da afinidade, muitos recuam. De fato é muito mais fácil e menos cansativo só embarcar em algo, estar em uma organização, uma assembleia permanente ou uma cena e manter e reproduzir características formais, invés de encarar uma longa e virtualmente infinita pesquisa por compas com os quais compartilhar ideias, análises e eventualmente projetos. Porque afinidade é exatamente isso: um conhecimento recíproco entre camaradas, análises compartilhadas que levam a prospecção de ação. Afinidade é portanto, por um lado voltada ao aprofundamento teórico e por outro, a intervenção na conflitualidade social.

Afinidade está localizada radicalmente no plano qualitativo. Ela aspira ao compartilhamento de ideais e métodos, e não tem o crescimento infinito como objetivo. Para alguns camaradas, uma das principais preocupações, mesmo se bem escondida, parece continuar sendo números. Quantos somos? O que deveríamos fazer para sermos mais? Da polarização de tal pergunta para constatação de que hoje não somos muitos, dado o fato de que muitos outros não compartilham de nossas ideias (mesmo que inconscientemente), surge a conclusão de que para crescer numericamente, devemos evitar botarmos muita energia em certas ideias. Hoje em dia é mais difícil encontrar quem tente te vender um título de membro de alguma organização revolucionária, destinada a crescer quantitativamente e aspirando sempre representar os mais explorados; mas existem muitos que acreditam que a melhor forma de conhecermos uns aos outros é organizar atividades “consensuais” como, por exemplo, bares autogestionados, oficinas, shows, etc. Certamente essas atividades têm seu papel, mas quando encaramos o tópico da afinidade nós estamos falando de algo diferente. Afinidade não é o mesmo que amizade. É certo que um não exclui o outro, mas não é porque compartilhamos certas análises que vamos dormir juntos, e vice-versa. Da mesma forma, só porque escutamos as mesmas músicas não quer dizer que queremos lutar contra a dominação da mesma forma.

A busca por afinidade acontece num nível interpessoal. Não é um evento coletivo, um caso coletivo, onde sempre é mais fácil seguir do que pensar por si mesmo. O aprofundamento da afinidade é evidentemente uma questão de pensamento e ação, mas no fim afinidade não é o resultado de executar ações juntos, mas invés disso, o ponto inicial do qual partimos para a ação. Ok, alguém pode dizer que isso é óbvio, mas então isso significaria que eu não conheceria muitas pessoas que poderiam ser bons compas, porque de algum modo eu estaria confinado a afinidade. É verdade que a busca e o aprofundamento da afinidade exige muito tempo e energia, e que portanto não é possível generalizar isso para todos camaradas. O movimento anarquista de um país, de uma cidade ou mesmo de uma vizinhança não pode se tornar um grande grupo de afinidade. Não se trata de fazer crescer diferentes grupos de afinidade com mais camaradas, mas tornar possível a multiplicação de grupos de afinidade autônomos. A busca, a elaboração e o aprofundamento da afinidade leva a pequenos grupos de compas que conhecem uns aos outros, compartilham análise e juntos, passam a ação.


O caso é que… O aspecto de “grupo” de um grupo de afinidade tem sido criticado, tanto por motivos corretos quanto motivos equivocados. Existem compas que compartilham a noção de afinidade, mas tudo se torna mais complicado quando passamos a falar sobre “grupos” o que por um lado vai além do aspecto inter-individual, e por outro parece limitar o “crescimento”. Na maior parte do tempo as objeções são sobre os perniciosos mecanismos de “interior/exterior”, de “dentro/fora” que tais grupos de afinidade podem gerar (como por exemplo, renunciar seu próprio caminho para seguir o de outros, as escleroses e os mecanismos que podem surgir, como certas formas de competição, hierarquia, sentimento de superioridade ou inferioridade, medo…). Mas estes são problemas presentes em quaisquer tipo de organização e não são exclusivos a afinidade. É sobe refletir em como evitar que a busca por afinidade traga estagnação e paralisia invés de uma expansão e multiplicação.


Um grupo de afinidade não é a mesma coisa que uma “célula” de um partido ou a formação de uma guerrilha urbana. Já que sua busca é permanente, afinidade evolui na permanência. Ela pode “crescer” até o ponto de que um projeto compartilhado se torne possível, mas, por outro lado, também pode “diminuir” até que qualquer ação conjunta se torne impossível. O arquipélago de grupos de afinidades portanto mudam constantemente. Essas mudanças constantes são geralmente identificadas por seus críticos: não se pode construir nada com elas, pois não são estáveis. Nós estamos convencidos do oposto: não há nada a ser construído ao redor de formas organizacionais que giram em torno de si mesmas, longe dos indivíduos que são parte dela. Pois cedo ou tarde, depois dos primeiros golpes, inevitavelmente vão ssurgir as desculpas e truques. O único terreno fértil onde se construir é a busca recíproca por afinidade.


Finalmente, nós gostaríamos de apontar que essa forma de organização também tem a vantagem de ser especialmente resistente a medidas repressivas do estado, já que não existem representantes oficiais, estruturas ou nomes a se defender. Onde formações cristalizadas e grandes organizações podem ser desmanteladas com um só golpe, pelo mesmo motivo pelo qual são bastante estáticos, grupos de afinidade permanecem ágeis e dinâmicos mesmo quando a repressão bate. Uma vez que grupos de afinidades são baseados em conhecimento recíproco e confiança, os riscos de infiltração, de manipulação e infiltração são muito mais limitados do que em grandes estruturas organizacionais onde as pessoas podem integrar formalmente ou em circunstâncias mais vagas onde só é necessário reproduzir certos comportamentos para entrarem no clube. Afinidade é um lugar difícil para a corrupção se espalhar, exatamente por começar com ideias e evolui destas ideias.

Organizações informais e capacidade de projeção

Nós acreditamos que anarquistas têm maior liberdade e autonomia de de movimento para intervir na conflitualidade social se nos auto-organizarmos em pequenos grupos baseados em afinidade, invés de grandes formações ou em formas organizacionais quantitativas.Certamente, é desejável e geralmente necessário que estes pequenos grupos sejam capazes de se entenderem. E não com o objetivo de serem transformados em um leviatã ou falange, mas para conquistar objetivos específicos compartilhados. Esses objetivos portanto determinam a intensidade da cooperação, da organização. Não é proibido que um grupo que compartilhe afinidade organize uma manifestação, mas em muitos casos uma coordenação entre diferentes grupos pode ser desejável e necessária para realizar este objetivo específico, fixado no tempo. Cooperação pode também ser algo mais intenso no caso de uma luta um pouco mais avançada, como, por exemplo, um combate específico contra uma estrutura de poder (a construção de um centro de deportação, de uma prisão, de uma base nuclear…). Num caso assim, nós poderíamos falar sobre organização informal. Organização, pois estamos lidando com a coordenação de vontades, meios e capacidades entre diferentes grupos de afinidades e indivíduos que compartilham um projeto específico. Informal pois nós não estamos preocupados com promover nenhum nome, ou fortalecer quantitativamente uma organização, ou nos subscrevermos a um programa ou declarações de princípios, mas a uma coordenação ágil e leve para responder as necessidades de um projeto combativo.

De certa forma, organizações informais também se encontram no campo da afinidade, mas vai além da questão interpessoal. Elas existem somente na presença de uma projeção compartilhada. Uma organização informal é portanto diretamente orientada para o conflito, e não pode existir fora deste contexto. [Como mencionado anteriormente, isso ajuda a responder as exigências de um projeto de luta que não pode ser sustentado por um único grupo de afinidade. Isso pode, por exemplo, permitir a disponibilidade de meios que consideramos necessários. A organização informal portanto não tem um objetivo de reunir todes camaradas sob uma mesma bandeira ou reduzir a autonomia de grupos de afinidade e/ou individualidades, mas para permitir que estas autonomias dialoguem. Esta não é uma brecha para que façamos tudo juntos, mas uma ferramenta para materializar o conteúdo e o sentimento de um projeto em comum, através das intervenções específicas de grupos de afinidades e individualidades.

O que significa ter um projeto? Anarquistes querem a destruição de toda autoridade, disto podemos deduzir que elus estão em busca constante por formas de realizar isso. Em outras palavras, certamente é possível ser ativamente anarquista e não estar em um projeto de luta específico. De fato, é isso que geralmente acontece. Ou anarquistes estão seguindo a diretiva das organizações que participam (algo que parece pertencer mais ao passado), ou estão aguardando a chegada de lutas das quais podem participar, ou tentam incluir o máximo possível de aspectos anarquistas em suas vidas cotidianas: nenhuma dessas atitudes presume a presença real de projeção – algo que, vamos ser bem explícitos, não torna estes camaradas menos anarquistas. Um projeto é baseado na análise de contextos sociais, políticos e econômicos nos quais nos encontramos, e a partir dos quais refinamos nossas perspectivas que nos permitem intervir no curto e médio prazo. Portanto, um projeto que mantém análises, ideias e métodos, coordenados para alcançar um propósito. Nós podemos, por exemplo, publicar um jornal anarquista pois somos anarquistas e queremos difundir nossas ideias. Ok, mas uma abordagem mais focada na projeção exigiria uma análise das condições nas quais essa publicação seria adequada para intervir na conflitualidade, que forma deveria tomar… Nós podemos decidir lutar contra deportações, contra a deterioração das condições de vida, contra o encarceramento em massa… pois todas estas coisas são simplesmente incompatíveis com nossas ideias; desenvolver um projeto precisaria de uma análise para compreender de onde uma intervenção anarquista seria mais interessante, que métodos usar, como pensar em dar um impulso ou intensificar a tensão do conflito em dado período do tempo. Desnecessário dizer que projetos similares geralmente são a ocasião para nos organizarmos informalmente, em uma coordenação entre diferentes grupos e individualidades anarquistas.


Sendo assim, uma organização informal não pode ser fundada, construída ou abolida. Ela nasce de forma completamente natural, atendendo as necessidades de um projeto de luta e desaparecendo quando esse projeto é realizado ou quando se acessa que ele não é mais possível ou relevante. Isso não coincide com a totalidade do conflito em andamento: as muitas formas organizativas, os diferentes locais de encontro, as assembleias, etc. produzidas por um conflito vão existir independentes da organização informal, o que não significa que anarquistas não podem estar presentes nestes espaços também.

Os “outros”

Até agora nós temos falado principalmente sobre formas organizacionais entre anarquistas. Sem dúvida, muitas revoltas nos oferecem poderosas sugestões que fazem paralelo com o que discutimos até aqui. Vamos considerar a revolta que aconteceu ano passado em uma certa metrópole. Muitos rebeldes se organizaram em grupos pequenos e ágeis. Ou, vamos lembrar sobre as revoltas do outro lado do Mediterrâneo. Não houve necessidade de uma organização forte ou algum tipo de estrutura representativa para iniciar uma revolta, suas bases foram construídas de formas múltiplas de organizações autônomas informas. É claro, em tudo isso, nós precisamos nos expressar no “conteúdo” dessas revoltas, mas sem formas organizacionais antiautoritárias, seria completamente impensável que eles tivessem optado por uma direção liberatória e libertária.

É hora de dizer adeus, de uma vez por todas, a todos reflexos políticos, em especial nos dias de hoje quando revoltas já não respondem mais a prerrogativas políticas. Insurreições e revoltas não deveriam ser conduzidas, nem por autoritários, nem por anarquistas. Elas não pedem para serem organizadas em grandes formações. Isso não exclui nossa contribuição em tais eventos (fenômenos que são realmente sociais) não podem se manter simplesmente espontâneas se aspiramos por uma contribuição qualitativa – isso exige uma certa quantidade de organização e projeção. Entretanto os explorados e os excluídos não precisam de anarquistas para se revoltar ou se insurgirem. No melhor dos casos nós podemos ser um elemento adicional, bem-vindos ou não, uma presença qualitativa. Mas mesmo assim, isso continua sendo importante para levarmos as rupturas insurrecionais para uma direção anarquista.

Se os explorados e excluídos são perfeitamente capazes de se revoltar sem a presença de anarquistas, não é por isso que estaríamos prontos para renunciar de buscarmos pontos e terrenos onde podemos lutar junto deles. Estes pontos e esse terreno não são consequências “naturais” ou “automáticas” de condições históricas. O encontro entre grupos de afinidade, assim como organizações informais de anarquistas e explorados dispostos a lutar, acontecem com mais qualidade durante o conflito em si, ou ao menos numa proposta de conflito. A necessidade de difundir e aprofundar ideias anarquistas é inegável e em momento algum deveríamos escondê-la, confiná-la a becos, ou disfarçá-las em nome de alguma estratégia. Entretanto em um projeto de luta insurrecional não é sobre converter o maior número de explorados e excluídos para suas ideias, mas tornar possível experiências de luta com uma metodologia anarquistas e insurrecional (ataque, auto-organização e conflitualidade permanente).

Dependendo das hipóteses e dos projetos, é necessário refletir sobre quais formas organizacionais podem surgir deste encontro entre anarquistas e aqueles que querem participar de uma luta radical. Essas fomas organizacionais não precisam ser necessariamente constelações anarquistas, já que outros rebeldes também participam dela. Eles são, portanto, não um apoio para “promover” o anarquismo, mas tem o propósito de dar forma e substância a uma luta insurrecionária.

Em alguns textos, baseados em uma série de experiências, há a menção de “núcleos de base” formados dentro do projeto de uma luta específica, de formas de organização baseadas em três características da metodologia insurrecional. Anarquistas participam mas junto de outros. Em certo sentido, eles são como pontos de referência (não do anarquismo, mas do conflito em andamento). Eles funcionam de algum modo como os pulmões da luta insurrecionária. Quando essa luta é intensa, envolve muitas pessoas, e diminui em números quando a temperatura baixa. O nome destas formas organizacionais tem pouca importância. É preciso discernir, dentro de certos projetos de luta, se formas organizacionais semelhantes são imagináveis ou necessárias. Nós também precisamos ressaltar que não se tratam de coletivos, comitês, assembleias populares, etc. formadas anteriormente e que têm como propósito durarem no tempo, e cuja composição raramente é antipolítica e autônoma (já que geralmente existem elementos institucionais envolvidos). Os “núcleos de base” são formados dentro de um projeto de luta e se mantém por um único propósito concreto: atacar e destruir um aspecto da dominação. Por isso eles não são organizações parasindicalistas que defendem os interesses de um grupo social (em comitês de desempregados, em assembleias de estudantes…), mas oportunidades de organizações voltadas para o ataque. As experiências de auto-organização e ataque obviamente não garantem que num futuro conflito os explorados não vão aceitar ou tolerar elementos institucionais. Mas sem essas experiências, esse tipo de reação seria praticamente impensável.

Em resumo, acreditamos que não é sobre construir organizações que vão “atrair as massas” ou as organizar, mas desenvolver e pôr em práticas propostas concretas de luta. Portanto, dentro dessas propostas de caráter insurrecionário é importante refletir sobre as formas organizacionais consideradas necessárias e adequadas para realizar uma proposta de ataque. Reforçamos mais uma vez que essas formas organizacionais não implicam necessariamente em estruturas com reuniões, locais de encontro, etc, mas que também podem nascer diretamente nas ruas, em momentos de conflito. Em certos locais, por exemplo, pode ser mais fácil criar alguns “pontos de referência” ou “núcleos de base” com outros explorados ao interromper a rotina, construindo barricadas nas ruas… Invés de esperar que todos venham a reunião para debater sobre fazerem barricadas. Estes aspectos não podem ser deixados totalmente à sorte ou espontaneidade. A projeção nos permite reflexão e uma avaliação de diferentes possibilidades e sua relevância.

Resumindo

Se a questão vai para além de organizar pessoas para a luta, ela se torna sobre como organizar a luta. Nós acreditamos que arquipélagos de grupos de afinidades, independentes, capazes de se associarem de acordo com suas prospecções e projetos concretos de luta, formam o melhor caminho para passarmos diretamente para a ofensiva. Essa concepção oferece a maior autonomia e o campo de ação mais amplo possível. Na esfera dos projetos insurrecionais isso é necessário e possível para encontramos formas de organizações informais que permitam o encontro entre anarquistas e outros rebeldes. Formas de organização que não busquem perpetuar a si mesmas, mas voltadas para um propósito específico.

[Traduzido de Salto, subversion & anarchy, edição 2, novembro de 2012 (Bruxelas).]