OVNIs e a Saudade do Não Identificado

OVNIs e a Saudade do Não Identificado

Publicado orginalmente em Ill Will por Wu Ming

15 de Março, 2023

Durante a pandemia do Covid-19 em 2020, houve um aumento exponencial de avistamentos de Ovnis por todo Ocidente. Em Fevereiro de 2023, o conceito de “Fenômeno aéreo não identificado” se tornou central na disputa entre os EUA e a China sobre supostos balões espiões.

O coletivo italiano de escritores, Wu Ming, recentemente publicou UFO 78, uma novela na qual a história principal se passa entre Março e Maio de 78. Nela, o sequestro do ex-primeiro-ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas está conectado a uma grande onda de avistamentos de Ovnis que aconteceu na Itália naquele ano. A novela segue de perto outro livro, La Q di Qomplotto [O Q da Qonspiração] (2021) na qual um membro do coletivo Wu Ming desenvolveu uma leitura anticapitalista para pensamento conspiracionista, usando Qanon como seu estudo de caso.

No ensaio a seguir, que apareceu no blog do Wu Ming, Giap, em 24 de Fevereiro de 2023, depois expandido para a publicação no Ill Will, o coletivo italiano interpreta o retorno dos UFOs a nossa imaginação coletiva e a “saudade do não identificado” não apenas como um sintoma da ansiedade climática e nosso dilema pós-pandemia, mas também a manifestação de um “impulso utopista”, uma tentativa de escapar de um sistema que nos força continuamente a nos identificar enquanto sufoca qualquer perspectiva de mudança radical.

Outras linguagens: Italiano, Espanhol, Grego


No meio dos 2010, quando começamos a trabalhar no UFO 78, havia muito pouca conversa sobre UFOs, ao menos no mainstream. Fora de certos nichos, o tópico havia se tornado demodé há anos. De vez em quando alguém nos perguntava: “Sobre o que vai ser a próxima novela?” E nós respondíamos: “É sobre a obsessão em Ovnis que aconteceu na Itália em 78” A essa altura o interlocutor com uma cara confusa, respondia: “Ah, estranho… Porque vocês decidiram escrever sobre Ovnis ?” Dávamos alguma explicação, tentando evitar spoilers. E normalmente um grande “meh” imprimia a si mesmo na testa do ouvinte.


Então por alguma vontade da história, enquanto nós estávamos escrevendo o livro, os avistamentos de Ovnis atraíram a atenção do público mais uma vez. Aconteceu de repente por todo Ocidente, durante os grandes confinamentos da pandemia de 2020. Relatos se multiplicaram em rápida sucessão, eram inúmeros “flaps”[1]. Desde então, é seguro dizer que nós estivemos em meio a uma onda de avistamentos. Esse fato é reconhecido por Washington, também. Em Janeiro de 2023, o Office of the Director of National Intelligence lançou seu relatório anual sobre “fenômenos aéreos não identificados” (hoje uma designação oficial, por isso o acrônimo UAP) que fornece os dados aos EUA. Considerando que de 2002 para 2017 as agências de inteligência classificaram 263 avistamentos, registraram 247 (quase o mesmo número) entre 2020-2022 apenas. Um salto em escala, de dúzias para centenas por ano. Ainda assim, não é nada comparada a onda de 1978, durante a qual aproximadamente 2000 foram registrados somente naquele ano, em um país muito menor que os EUA. Contudo, não há dúvidas que os Ovnis estão de volta. Ou melhor, as pessoas voltaram a avistá-los. Por que?

Olhando para o céu como prelúdio para libertação total

Quando seres humanos se sentem acuados, cerceados (reprimidos), perturbados, eles voltam seus olhos para o céu, para o firmamento. O ato de olhar para o céu estrelado é o prelúdio de qualquer libertação, qualquer revolução. É coincidência que o termo anterior tenha origem na observação das estrelas? A “revolução copernicana” de Immanuel Kant em diante, é uma metáfora para uma mudança de época, para reviravolta das perspectivas, para entrar agora num novo paradigma de conhecimento.

Não existe fundação de civilização ou começo de uma nova fase da história que não tenha começado dessa forma, ao se olhar para cima, por que olhar para o céu amplia a percepção de espaço e portanto de possibilidade, alivia a cabeça dos pesos do presente, permite que se pense mais livremente (o verbo “considerar” vem de cum sidera, na companhia das estrelas) e portanto é sobre aspirar algo diferente e melhor. “E eu vi um novo céu e uma nova terra” (Rev. 2:21).

Pense na tão citada frase de Hamlet, “Há mais entre o céu e a terra. Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia.” (Ato 1, Cena 5). Hamlet profere isso após falar com o fantasma de seu pai. Quando seu amigo (também egresso de Wittenberg) encontra a circunstância “estranha e maravilhosa”. Hamlet responde a ele que espaço infinito implica na infinidade de possibilidades e hipóteses, portanto a todo momento a realidade excede qualquer doutrina do presente, qualquer filosofia e ciência da moda de qualquer tempo que for. É um alerta contra o cientificismo.

Mais objetos voadores que podemos imaginar

Durante os grandes lockdowns nós olhávamos mais frequentemente para o céu. Todos nós fizemos isso. Havia menos poluição luminosa, e o céu estava mais limpo que o normal. Nessa época se acreditava que o céu estava completamente limpo. A imprensa disse que aviões não estavam voando, e na televisão haviam imagens de aeroportos desertos. Então a aparição de luzes inesperadas geraram surpresa. Daí, o salto para pensar que se viu um OVNI, um objeto não identificado, não demorava. Mas o céu não estava completamente limpo.

O Capitaloceno nunca é completamente limpo.

Na primavera de 2020, e de novo no Outono da chamada “segunda onda” (uma onda de contágios, nesse caso), o tráfego aéreo civil era mínimo, mas ele seguiu. Aviões decolaram e pousaram, para garantir viagens essenciais. E haviam os voos militares, que foram eximidos de qualquer lockdown.

Acima de tudo, estão os satélites. A maioria de nós não tem noção de quantos satélites orbitam sobre nossas cabeças. Quantos, você pergunta? Hmm, talvez umas poucas dúzias? Nah. Em 2020 haviam mais de 3000, nos dois anos seguintes esse número cresceu para cerca de 8000 (dos quais aproximadamente 3000 pertencem a SpaceX, ou seja, Elon Musk) e o número total continua a crescer. Aparentemente, com o 5G vai chegar às dezenas de milhares. Ainda mais abundantes são os destroços orbitais: escombros de satélites que colidiram com outros satélites ou foram atingidos por meteoritos, mas também lixo jogado da Estação Espacial Internacional (ISS). De acordo com a Agência Espacial Europeia (ESA), cerca de 36000 peças de destroços com mais de dez centímetros de diâmetros estão voando em órbita neste momento.2

Medidas de centímetros não deviam nos enganar: algumas peças de lixo são muito grandes. Em Março de 2021, o ISS descartou um painel de baterias de níquel-hidrogênio usadas pesando 2.9 toneladas

Então temos os balões de sondagem, vamos falar deles em um momento. Às vezes pode ser o voo de uma lanterna chinesa, às vezes um meteoro pode ser visto queimando conforme entra nossa atmosfera. Resumindo, mesmo em 2020, muitos objetos estavam cruzando o céu, brilhando ou refletindo luz.

Uma saudade do não identificado (1978-2020)

Descobrir o que aqueles objetos eram não teria sido difícil, especialmente naqueles meses, quando as pessoas viviam ansiosamente debruçadas sobre a Internet. Existem sites e apps que nos permitem seguir o voo da ISS, ou ver quantos satélites estão em órbita e traçar suas posições a qualquer momento. Em muitos casos, uma pequena parcela do tempo que as pessoas normalmente gastariam online seria o suficiente para explicar tal-e-tal luz no céu, evitando conclusões precipitadas.

Como pode isso não ter acontecido? Como pode isso ter acontecido tão raramente? É uma questão de preguiça mental, ou ignorância?

Na nossa opinião as pessoas saltam para conclusões sobre OVNIs, no mundo de hoje como foi na Itália de 1978. O não identificado é libertador. Nós tendemos a chamar uma luz no céu de Ovni, ou seja, um objeto não identificado, como uma reação para um mundo ao nosso redor que, agressiva e constantemente exige que nos identifiquemos, para continuamente declarar quem nós somos, de onde viemos, de que lado estamos.

Na Itália, 1978 foi um ano de militarização pesada dos espaços físicos e discursos públicos. Dezenas de milhares de postos de controle entrecruzaram o país, milhões de pessoas foram paradas nas ruas e pedidas que mostrassem seus documentos de identidade. Além disso, havia uma pressão obsessiva para se escolher lados, um incessante questionamento de consciências: em que campo você está? Você está do lado do estado ou com o “terrorismo”? Com a “democracia” ou com os “subversivos”? Você é um bom cidadão ou um “traidor”? Nenhuma terceira possibilidade era dada. Esse era o começo de estados de emergência permanentes como uma – nah, a – estratégia governamental. A partir de então, se você tivesse uma opinião que saísse fora do padrão binário oficial você se encontraria em espaços cada vez mais confinados: nichos e lugares de marginalidade, o beco onde você injetaria heroína, na melhor das hipóteses, a esfera da sua vida pessoal, vida doméstica. Em todo caso, você estava fora do discurso público.

Em 2020, os centros de controle estavam em todo lugar novamente, com policiais guardando novas fronteiras que eram tão perigosas e intransponíveis quanto eram efêmeras, pois estavam sujeitas às vontades das autoridades, e redefinidas com cada nova ordem ou decreto. Havia uma fronteira entre sua municipalidade e a vizinha, uma fronteira entre a rua pública e o parque ou praia que autoridade havia proibido (agentes da lei comumente usaram drones para caçar caminhantes solitários nas matas), uma fronteira entre o resto do parque e o parquinho das crianças cercado pela fita vermelha e branca (numa certa fase os parques foram abertos mas as crianças não podiam usar os balanços), e por aí vai, de maneira quase fractal. A cada uma dessas fronteiras você podia ser parado e identificado.

Era mais que isso: você podia sair da sua casa apenas se sua “auto identificação” (para ser apresentada junto de seu RG) fosse “ confiável”, isso é, se você pudesse provar que sair de casa era necessário. E então a contra-ordem: de certos dias em diante você podia sair para simples “exercícios” mas em uma região você deveria permanecer a 200 metros da sua casa, em outras a 500, etc. Então com o toque de recolher, uma nova fronteira: a fronteira entre as 09:59 p.m. e as 10:00 p.m. que depois mudou, das 10:59 p.m. e 11 p.m. Tudo isso, e mais, foi acompanhado por uma renovada pressão de se escolher lados. Uma pressão que é tipicamente “emergencialista”, mas em 2020 foi mais imperativa que nunca: você está com o governo ou com os “negacionistas do vírus”? Com o governo ou com os “disseminadores de doenças”? As margens para os que rejeitaram essa lógica binária eram ainda mais estreitas do que durante os 1970 da emergência terrorista. Aqueles que criticaram a administração neoliberal da pandemia, desresponsabilizante, e criadora de bodes expiatórios, foram empurrados para espaços extremamente estreitos de discurso, onde eles eram bombardeados com insultos, ameaças e difamações.

Em 2021, com a chegada das vacinas anti-covid, o “passe verde obrigatório” criou uma rede ainda mais densa e exaustiva de fronteiras. De fato, sem aquele certificado (cujos princípios de validade mudaram várias vezes, conforme a vontade das autoridades) a pessoa era excluída da vida social. A lógica binária foi levada ao paroxismo: ou você é a favor do passe verde ou é um “novax” (o curiosamente falso neologismo em inglês que a imprensa italiana usa para antivaxxers) ou então simplesmente um “fascista”. Nenhuma outra posição podia ser considerada. Campanhas de repressão e difamação contra os que se opunham ao governo foram selvagens. Aquela altura a maioria das pessoas podiam apenas obedecer, e seguir o fluxo mais ou menos de má vontade.

Emergência é um instrumentum regni, fundamenta uma realidade que se permite ser descrita e explicada de uma única maneira: à maneira oficial, a do poder e da mídia-Estado-capital. Durante a emergência pandêmica, esse poder era apoiado e legitimado por um – na realidade não-científico – culto a Ciência oficializado pela mídia, um culto cujos televangelistas pontificavam sobre os limites –  não apenas epistemológicos mas limites políticos – de todo o discurso relacionado ao Covid.

Em tais contextos, o não identificado intercepta e interpreta o desejo de fugir da jaula para viver uma vida diferente. É uma manifestação do impulso utópico do qual Ernst Bloch falou, um impulso que pode expressar a si mesmo em toda esfera, “do entretenimento de massas, da iconografia a tecnologia, da arquitetura ao eros, do turismo a piadas e o inconsciente.”[3].

Eu vejo uma luz no céu, e eu posso acessar facilmente uma explicação racional; mas não é mais bonito, mais inspirador, mais aliviante pensar nele como um objeto não identificado? Todo o resto é identificado e certificado – pelo amor de Deus, você não pode me deixar ao menos ter esse momento?

Ainda mais quando não há uma explicação racional e o objeto é realmente não identificado. De acordo com o relatório de Janeiro citado acima, houveram 171 avistamentos inexplicáveis nas últimas duas décadas, e estes números são apenas dos EUA. Alguns destes objetos apresentaram “capacidades de voo ou capacidades de performances não usuais”.

A ufologista britânica Heather Dixon escreveu no The Guardian:

“Geralmente me perguntam se eu acredito em vida extraterrestre, se acredito que um dia haverá contato. Afinal, após 2% dos casos de OVNIs que ouvimos falar, cerca de 2% não são identificados – ainda assim […] Pessoalmente acredito que há uma explicação racional para os objetos derrubados recentemente pelo exército dos EUA. Mas ainda existem mistérios, e penso que sempre vão haver. Eu me pergunto que narrativas os seres humanos vão inventar para explicar os avistamentos do futuro, e que tipo de ficção científica surgirá a seguir. A ciência e os especialistas serão capazes de explicar todas essas coisas eventualmente? Suspeito que não, eu espero que não.” Ufofilo Jimmy Fruzzetti poderia ter dito o mesmo. [4] “Mistério é uma dimensão fundamental do ser humano. Explicar tudo sempre será impossível, exceto como uma projeção distópica. Um mundo onde tudo foi definitivamente classificado, catalogado, quantificado, e certificado seria um mundo onde a imaginação morreu, morrendo junto, portanto, a nossa humanidade.

Chineses ou alienígenas? A ameaça que vem do céu

Em fevereiro de 2023, três meses após o lançamento de UFO 78, o debate sobre OVNIs, e sobre a hipótese de vida alienígena, capturou a atenção do mundo todo.

Em 04 de fevereiro, nos céus da Carolina do Sul, um F22 derrubou um objeto misterioso. De acordo com a Casa Branca, se tratava de um balão espião chinês. Mesmo depois do comunicado o fato, notícias do avistamento circularam o mundo, gerando todo tipo de especulação. A imprensa contatou a usual trupe de atores do improviso conhecidos como “analistas” ou “especialistas em geopolítica”. Como disciplina, a geopolítica tem o mesmo valor que piadas étnicas; por outro lado, tem a vantagem de ser muito telegênica. No campo oposto, especialmente nas redes sociais, os amantes das fantasias conspiratórias – sobre alienígenas, Roswell, “cortinas de fumaça” planetárias, homens de preto, reptilianos, os Elohim, o Projeto Blue Beam, etc – ficaram hiperativos. O governo chinês obviamente protestou, e declarou que o balão derrubado de fato pertencia a eles, mas seria apenas um balão de sondagem, lançado para fins científicos e que acabou saindo de curso. Um veterano da diplomacia chinesa chamou a derrubada como “praticamente histérico, e um uso absolutamente impróprio de força militar”. Autoridades chinesas consideraram que os EUA estavam culpando a China pelo que eles normalmente fazem , já que os balões espiões dos EUA têm repetidamente violado espaço aéreo sobre o Tibet e Xinjiang. Seja lá o que o objeto derrubado fosse, as comportas foram abertas. Paranoia geopolítica sobre os “inimigos do Ocidente”, a mesma paranoia que tem visitado qualquer discurso sobre a guerra na Ucrânia, gerou um alarmismo exagerado, deslocado e diversionista. Entre os poucos que disseram isso abertamente estava Michael Tomasky, editor do The New Republic:

“O que interessa esse balão? […] Ok – se ele está ligado a alienígenas até eu vou admitir que é algo importante. Mas caso contrário – quem se importa? Eu gostaria que você chutasse quantos satélites espiões existem circulando a Terra agora mesmo. Eu vou revelar o número no final dessa coluna[…] Eu entendo porque o interesse no assunto. É algo que uma pessoa comum nunca pensa a respeito e porque a China – desculpe, a CHINA!- é tão assustadora, isso se torna uma grande história […] E a resposta para a minha pergunta acima é que existem aproximadamente 5465 satélites espiões circulando nossa pequena órbita, vigiando cada centímetro do nosso globo a cada segundo de todos os dias. Se um cara qualquer rouba uma vaga de estacionamento na Chester Street em Maysville, Kentucky, e a China quer saber a respeito, ela vai descobrir. As pessoas precisam entender a realidade que vivem.”

Tarde demais. Naquela altura o establishment estava vendo balões espiões em todos os cantos.

Na sexta-feira 10 de fevereiro, outro F22, dessa vez nos céus do Alaska, derrubou um segundo objeto, que foi descrito como tendo “o tamanho de um carro pequeno”. As piadas vieram prontas, e inúmeras pessoas nos mandaram mensagens dizendo, “os EUA derrubaram um Renault 4!” [5] No sábado, 11 de fevereiro, houve mais uma derrubada, dessa vez em espaço aéreo canadense, sobre Yukon, em acordo com o primeiro-ministro Justin Trudeau. O objeto foi descrito inicialmente como “um pequeno cilindro”, depois como “um pequeno balão de metal”.

No domingo, 12 de fevereiro, um F16 derrubou um quarto objeto – com uma “estrutura octogonal e fios” – sobre o Lago Huron, na fronteira entre o Michigan e o Canadá. Mais tarde descobrimos que o primeiro míssil errou o alvo por conta do tamanho diminuto do alvo.

Em uma coletiva de imprensa no mesmo dia, quando questionado se havia desconsiderado uma possível de origem extraterrestre para os misteriosos objetos, o General Glen Vanherck, o responsável pela defesa do espaço aéreo da América do Norte, respondeu, “Eu vou deixar a comunidade de inteligência e de contrainteligência responderem isso. Não descartei nenhuma possibilidade ainda.”

É claro, que o que Vanherck queria dizer era, “não me incomode com algo tão idiota”; mas o mero fato de que um general pareceu não descartar a ideia de que o espaço aéreo dos EUA foi violado por alienígenas seria algo como um furo de reportagem, e um emaranhado de manchetes sensacionalistas surgirem ao redor de todo o mundo.

No dia seguinte, um oficial da Defesa dos EUA disse em anonimato ao repórter Phil Stewart, da Reuters, que “não há indicação de atividades de alienígenas ou extraterrestres nestas derrubadas recentes.”

O Jogo ($400000 por lançamento)

Em 15 de fevereiro, o Presidente Biden declarou que os últimos três objetos derrubados não eram balões espiões mas “provavelmente balões ligados a companhias privadas, recreação ou instituições de pesquisa, estudando o clima ou conduzindo outras pesquisas científicas”

De acordo com o Serviço de Meteorologia Nacional dos EUA, 1,8000 balões meteorológicos são lançados todos os dias, 92 somente nos Estados Unidos. Eles são usados para transmitir dados sobre temperatura, umidade ou pressão atmosférica em uma área específica. Destes, apenas 20% são recuperados. Os 80% restantes se tornam lixo do céu, sucata celestial, um parente do lixo espacial que mencionamos acima.

Além destes balões meteorológicos, existem os usados para telecomunicações, lançados por companhias como o Google.

E então nós temos os chamados balões de grande altitude, que são pequenos – apenas um metro de diâmetro – e feitos de PET luminescentes, então eles são altamente visíveis. Eles custam muito pouco e são acessíveis a todos. A comunidade de radioamadores os usa para lançar estações repetidoras e receber dados sobre sua navegação. Balões de grande altitude são carregados por energia solar, então podem voar por muito tempo. De acordo com algumas estimativas, 2.000 são lançados todos os dias. É mais provável que o objeto derrubado no Canadá fosse um balão de grande altitude chamado K9YO-15, que iniciou sua viagem em Illinois, em 10 de outubro.

Enquanto montar e lançar um balão de grande altitude custa apenas 30 dólares, cada míssil AIM-9X Sidewinter (o tipo usado para as derrubadas) custa $400000. Não admitindo, mas supondo que o primeiro objeto fosse de fato um balão espião, e considerando que ao menos um ataque não foi bem sucedido, os EUA gastou 1.5 milhões para derrubar, ao que tudo indica, o balão de algum nerd e duas sucatas aéreas.

Se os EUA decidirem travar guerra contra todo o lixo aéreo a indústria de armas comemoraria esfregando as mãos. “Uau, você sabe quantos mísseis vamos vender?” Mas em poucos dias o governo viria à falência. A verdade é que a guerra na Ucrânia tornou o Ocidente ainda mais estúpido. Nós sabemos menos sobre o “Oriente”, mas provavelmente as coisas não estão melhores por lá. As classes dominantes desperdiçam recursos, tempo, e energia em seus jogos de Risk enquanto, para nomear apenas um problema (mas o maior!), o desastre climático tem acelerado suas próprias dinâmicas. Incluindo dinâmicas culturais, que talvez incluam a atual “ansiedade ufológica”.

OVNIS de dia: oque eles representam?

Uma curiosidade dos últimos episódios é acontecerem durante o dia. Os episódios relatados aconteceram no céu diurno, que é muito diferente do firmamento noturno. À noite (quando a poluição permite) nós somos cum sidera; à noite nós podemos deixar nossos pensamentos correr livres, e pensar grande. Em contraste, o céu diurno não é nada além da atmosfera vista de baixo. E a atmosfera hoje nos inquieta como nunca nos inquietou antes, mesmo que a maioria de nós ignore estes tipos de pensamentos para evitar encarar suas consequências.

Conforme escrevemos, não chove há dois meses. Você dirige seu carro sobre as pontes e os rios estão secos. O Po, o Rhine, o Tagliamento, o Arno… a maioria dos rios italianos e (europeus) estão praticamente secos. Você vê, mas ignora o pensamento que se insinua: se já chegamos neste ponto no inverno, esse verão vai ser catastrófico. E, no longo prazo (apesar de nem tão longo) esse lugar vai simplesmente se tornar um grande deserto?

Essas questões podem te esmagar, é por isso que você acaba pensando em outra coisa, e outra e outra, evitando as más notícias, acontecimentos cuja enormidade é suficiente para adoecer qualquer um de nós, como o fato de que certas áreas da Amazônia passaram a emitir mais dióxido de carbono do que captura.

Mas elementos reprimidos retornam. Ansiedade climática manifesta a si mesma de outras formas. No lugar da chuva, outra coisa aparece no céu: balões espiões, tecnologias chinesas de vigilância, ameaças alienígenas…Essas são metáforas inconscientes da nossa ansiedade climática. Elas representam a ameaça do futuro, o futuro que nós reprimimos, ou (como as fantasias conspiratórias sobre “chemtrails” e “guerra climática”) imaginamos através do viés cognitivo, as forçando em padrões mais usuais ou mais facilmente “administráveis”.

O realismo capitalista imagina alienígenas capitalistas

Dependendo do momento, é possível ter medo do céu, ou olhar para o céu sonhando com salvação, um novo começo, uma vida além da rotina diária, um futuro digno.

Como as melhores ficções científicas têm mostrado por décadas, sempre que imaginamos vida inteligente em outros planetas, nós expressamos algum impulso utopista. A curiosidade sobre hipóteses extraterrestres, a esperança de que mais alguém “lá fora”, tudo isso está intimamente ligado a um desejo de pertencer a outro lugar, outra coisa que não este Capitalosceno devorando nosso futuro.

Certamente o The Economist, um dos mais ferrenhos defensores do realismo capitalista, é incapaz de reconhecer este impulso enquanto dedica um artigo inteiro às novas e cada vez mais sofisticadas maneiras de pesquisar vidas alienígenas no universo. Tanto o artigo quanto às hipóteses apresentadas nele confirmam que a imaginação capitalista é limitada por uma paranoia circular: é incapaz de imaginar nada além de si mesmo, isso é, vampirismo, extrativismo predatório, exploração, prevaricação, guerra. Após expor hipótese de que poderiam haver “civilizações estelívoras”, isso é, capaz de usar e consumir a energia de estrelas inteiras, o autor do texto conclui nos alertando que fazer contato com civilizações alienígenas de posse de tecnologias imensamente mais avançadas que a nossa poderia ser empolgante, “ainda que muito perigoso”.

Isso soa quase como uma resposta ao que escreveu o controverso guru trotskista J. Posadas escreveu em Junho de 1968. Supondo que toda civilização capaz de viagens intergaláticas deveria ser superior ao capitalismo, Posadas explicou

O capitalismo sente-se inferiorizado frente um sistema que considera superior. que ele vê como superior. As pessoas chegam à conclusão de que o capitalismo é inútil. [Diante dos OVNIs, as pessoas] dizem: “Olha para aquilo! E tu, para que serves?” A classe dominante sente-se diminuída [e tenta] espalhar a impressão de que isto é fantasia, para que as pessoas para que as pessoas não pensem que existem formas superiores de relações e que e que o capitalismo é incapaz de atingir esse nível.

Décadas depois, o realismo capitalista responde dizendo: não se engane, se outras civilizações existem, eles pensam exatamente como os capitalistas pensam. Se tivéssemos o poder de consumir estrelas inteiras para extrairmos sua energia, nós a consumiríamos, não ? Ao menos eles admitem que se em algum outro canto do universo existem pessoas como nossos elites e opressores daqui da Terra, bom, eles são o tipo de pessoas que você não quer encontrar.

Finalmente (por hora)

Aquele velho texto de Posadas – o mais conhecido de seus escritos – carrega muitas afirmações ridículas, não somente pela excentricidade do personagem (do qual nos inspiramos para UFO 78’s, Romulo Casella), mas também por vestígios ideológicos que sua corrente atual partilhava com muitos do movimento comunista do século 20: um entendimento grosseiramente linear do devir histórico,das tecnologia e desenvolvimentos de forças produtivas como artigos de fé, etc.

No entanto, precisamos aprender a identificar o que há de verdade nisso: Só uma imaginação capaz de ir além do capitalismo nos permitirá reunir estas expressões dissonantes de impulso utópico, começando pelo desejo do não identificado, e voltá-los em direção à mudança.

Alguns de nós estamos nos preparando para uma mudança, mesmo se pareça que estamos apenas olhando para o céu.

Imagens: Maria Lax

NOTAS

1. Na ufologia, um “flap” é uma série de avistamentos em uma pequena área, em um currto intervalo de tempo.

2. Se você está curioso sobre quantos detritos menor que 10 centímetros exitem, bem, o número está na casa dos milhões. Nenhum deles é visível da Terra, nem a olho nu, nem com telescópios comuns, por isso não parte dos debates sobre OVNIs. Entretanto, todos esses objetos refletem luz e contribuem enormemente para a poluição luminosa

3. Frederic James, Archeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Science Fiction, Verso, 2005,

4. Jimmy Fruzzetti é um personagem em UFO 78. Um representante de ufófilos, ele critica ufologistas pois “eles tem o Logos na cabeça. Eles são logocentricos, eles querem submeter os ovnis ao Mundo, a Razão, ao Significado [..] Ufofilia é ‘uma amizade com objetos não identificados’. Significa rejeitar preconceitos e impulsos de reconhecer e classificar. Talvez você tenha percebido que ufologistas se dividem em duas grandes correntes: racionalistas e paranoicos. Toda vez que um cara vê uma luz, [racionalistas] se apressam para, questionar, enquadrar, selecionar e descartar hipóteses. Somente quando eles não encontram nenhuma explicação racional para o avistamento eles admitem que o fenômenos pode ser de origem extraterrestre. [Paranoicos] parecem fazer o oposto: quando enxergam uma luz no céu ele imediatamente concluem que é uma na espacial ou veículo alienígena. Alguns deles acreditam que extraterrestres vêm visitando nosso planeta por milênios, de fato, eles vivem aqui e estão se escondendo entre nós, com intenções benignas ou malignas dependendo das versões. De todo modo, os Que-Mandam-no-Mundo […] os conhecem muito bem, eles sabem disso a muito tempo, mas nos mantém no escuro. Os estados tem relatórios de inteligência altamente confidenciais que eles escondem em laboratórios ultra secretos. Outros não vão tão longe, mas seguem supondo que ELES – as elites, os erviços secretos, cientistas – sabem de algo que não estão nos contando. Ah, se ao menos eles não escondesse essa verdade, esse Mundo, para eles mesmos! Aqui, as duas abordagens parecem diferentes, mas ambas são logocentricas. As duas tribos convergem como inimigas dos OVNIs. Quero dizer que os ufologistas são inimigos dos objetos não identificados. O objetivo deles é os identificar e portanto os privar do direito de indeterminação.”

5. O Amaranth Renault 4 no qual o corpo de Aldo Moro foi encontrado em Maio de 1978 é provavelmente o mais famoso e iccônico carro da história da Itália. Ele também aparece na capa de UFO 78, flutuando no céu sobre uma montanha misteriosa.