Perspectivas do Conflito Oeste e Nordeste da Síria

[Publicado originalmente por Crimethinc em 02.12.34]
A guerra civil síria permaneceu praticamente inerte desde 2020, dado um precário balanço de poder entre várias facções com vários níveis de apoio da Rússia, Turquia, Irã, e Estados Unidos. Nos últimos dias, entretanto, tomando vantagem pelo modo como o Irã e o Hezbollah tem estado ocupado com o conflito com Israel enquanto a Rússia tem estado distraída na Ucrânia, as forças antigoverno Hayat Tahrir al-Sham (HTS) terem tomado e intensificado sua campanha contra a ditadura de Bashar al-Assad. Enquanto Assad tem sido responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas e sua queda seria comemorada.
Como elaboramos anteriormente, a situação na Síria é complexa, e os mesmos eventos podem parecer muito diferentes de diferentes pontos de vista. Para podermos triangular a realidade informada por diferentes pontos de vista, apresentamos aqui uma perspectiva dos participantes expatriados na revolução no este da Síria, junto de um relato de anarquistas em Rojava, na região noroeste da Síria.

O que está acontecendo no noroeste da Síria?
Esta é uma tradução de uma declaração de Cantine Syrienne de Montreuil, um projeto estabelecido por participantes da revolução Síria no exílio. Você pode ler uma entrevista com elus aqui.
Uma aliança entre vários grupos “rebeldes” (jihadistas, islamistas, mercenários sob a tutelagem da Turquia, e afins) recentemente lançou uma grande ofensiva para romper o cerco à cidade de Idlib pelo regime e seus aliados, para responder a seus ataques assassinos. A operação recuperou o controle territorial em Aleppo (a segunda maior cidade da Síria) e as áreas do entorno.
Essa ofensiva segue a desestabilização do regime iraniano e do Hezbollah como uma consequência dos ataques israelenses. Aliados de longa data de Assad, as milícias controladas pelo Irã continuam a atacar as áreas rebeldes sírias após 7 de Outubro de 2023. Mesmo após o ataque por pagers orquestrados por Israel no Líbano, o Hezbollah atacou Idlib (em 20 e 23 de Setembro de 2024) após retirarem algumas de suas tropas do Líbano.

Uma manifestação em Idlib
Em um catastrófico contexto humanitário e econômico, a operação militares dos grupos “rebeldes” tem forçado centenas de pessoas a deixar as áreas que recentemente haviam sido controladas (por medo de represálias), mas também permitiu centenas de pessoas desalojadas retornar a suas terras e lares e encontrar suas famílias após longos anos de separação e dura sobrevivência em campos de refugiados.
Anos atrás, Aleppo já havia sido liberta do regime Assad e autoadministrada por seus habitantes de 2012 a 2016 antes de cair novamente nas mãos do regime graças ao apoio russo, iraniano e do Hezbollah no Líbano. Após um cerco brutal, um implacável bombardeio no qual 21.000 civis foram mortos, e destruição quase total da parte oeste da cidade, a queda de Aleppo marcou uma derrota militar decisiva para a revolução síria.

Hoje, podemos apenas comemorar ao veras forças do regime sendo obrigadas a fugir de Aleppo: imagens de detentos libertados de prisões, estátuas da família Assad derrubadas, retratos do [Supremo Líder do Irã, Ali] Khameini, [secretário-geral do Hezbollah, executado, Hassan] Nasrallah, ou do [oficial militar, executado, Qasem] Soleimani reduzidos a nada. Mas sejamos claros, não há como ter esperança de um futuro para a Síria nas áreas “libertadas” por estes grupos militares, sejam eles jihadistas ou “moderados”.
Entretanto, essa operação, apesar de criada e coordenada na Síria, não seria possível sem permissão da Turquia, que por sua vez parece ter sido exaurida pela escala da ofensiva. Sejamos francos, poucos ainda acreditam que [o presidente Recep Tayyip] Erdogan é um amigo do povo sírio. Massacres de populações curdas na Síria e além, organização de deportações forçadas de refugiados sírios, tentativas de longa data de normalizar relações com Assad, e o uso de combatentes sírios como mercenários para seus interesses geopolíticos, isso sem mencionar a repressão de toda dissidência interna.
Com relação aos grupos islamistas, seu poder tem sido contestado por anos pela população civil das áreas sob seu controle. Em 2024, manifestações massivas em Idlib exigiam a expulsão de [Abu Mohammad] al-Joulani, o líder do Hayat Thrir al-Cham (HTC), o grupo que governa o enclave.
Sem a legitimidade popular, o HTC governa pela força; ele falhou em realizar a revolução de 2011. Os sírios que se ergueram contra a tirania do regime Assad e sacrificaram tanto para poderem viver em liberdade não podem viver para sempre sob sob grupos como o HTC.

Portanto, uma satisfação amarga e ambígua. Muito permanece incerto. As consequências humanitárias certamente serão catastróficas. O regime e seus aliados agravaram seus ataques nas áreas já controladas pelos “rebeldes” assim como às áreas recém capturadas. Os hospitais em Aleppo, já sobrecarregados pela falta de recursos e pessoal. Nós ainda não sabemos qual será a posição das Forças Democráticas Sírias lideradas pelos curdos. A única coisa podemos ter certeza é que este eterno retorno de apoiadores do “eixo de resistência”, que, sob o disfarce de oposição a Israel e ao imperialismo ocidental, novamente vai lavar a reputação dos genocidas que assassinaram e expulsaram nossas famílias e amigos.
Em meio a tudo isso, somos afastados de nossa revolução e da possibilidade de autodeterminação de nossa nação. Entre poderes estrangeiros que jogam os jogos de influência que falam somente o poder das armas, por hora, força bruta e cálculos geopolíticos decidirão nosso futuro. Essa situação não é excelente, mas a queda do regime permanece como um pré-requisito para qualquer mudança do país. De novo e de novo, o povo luta pela queda do regime.
Vida longa a Sìria livre!
Gaza vive, a Palestina será livre!
“Todos eles precisam cair” por um Líbano livre!

O Ponto de Vista de Rojava
Uma breve análise dos principais acontecimentos dos últimos dois dias, com a contribuição de anarquistas internacionalistas na Síria.
Nos primeiro dias, a ofensiva de Hayat Tahrir al-Sham (HTS) teve avanços em direção ao oeste (Aleppo) e sul (Hama) e em Dezembro (1-2). As forças do regime Assad parecem ter capturado a cidade de Hama e contido o avanço do HTS em direção a cidade de Homs. A força aérea russa tem executado bombardeios contínuos, contra unidades do HTS mas também contra infraestruturas civis e militares em Idlib, Aleppo, e ao longo da rota por onde o HTS avança. Há relatos de casualidades civis e de combatentes. Aviões militares do regime Assad também executaram ataques aéreos, mas em menor escala. Em Aleppo, no distrito curdo de Sheik Maqsood, os residentes se prepararam para a autodefesa.
Ao norte de Allepo, o cantão de Şehba foi ocupado pelo Exército Nacional Sírio (SNA) [apoiado pela Turquia]. Milhares de pessoas que viveram em campos de refugiados desde a invasão turca a Afrin em 2018, estão sendo evacuadas. As Forças Democráticas Sírias (SDF) estão organizando um corredor humanitário para permitir a evacuação de Aleppo e Şehba. Por hora, não há registros de grandes embates entre a SDF e a SNA.
Em outras regiões da Administração Democrática Autônoma do Norte e Oeste da Síria (DAANES), ataques de artilharia e com drones foram registrados, mas na intensidade usual.
Há relatos da milícia apoiada pelo Irã, Hashd Ash-Shaabi se movendo em grandes números por territórios sírios, na região de Deir-Ez-Zor. Na mesma região, o SDF e o conselho militar do Deir-Ez-Zor estão se movendo militarmente para tomar e controlar cidades e vilarejos.
As forças do Estado Islâmico que permanecem no deserto do centro da Síria, não foram vistos fazendo grandes movimentos, mas é esperado que usem a situação para avançar sua agenda.

um mapa publicado pela Al Jazeera mostrando a atual distribuição de controle territorial na Síria
O SDF chamou por mobilizações massivas, pedindo à juventude para se unir ao SDF para estarem prontos para repelir ataques aos territórios livres. É esperado que a escalada se intensifique e que facções apoiadas pela Turquia usem esta oportunidade para atacar a região oeste da DAANES, como Minbij.
A princípio, houve boatos sobre uma tentativa de golpe em Damasco; se essa tentativa aconteceu, parece ter sido rapidamente vencida.
Egito, Rússia, os Emirados Árabes, e o Irã demonstraram forte apoio ao regime Assad.
A Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria, também conhecida como Rojava, está no meio de um novo turbilhão. Nos últimos meses o número de refugiados chegando aos cantões leste, vindos do Líbano, facilmente poderiam superar 200.00 nas próximas semanas.
Nos primeiros dias da ofensiva do HTS e do avanço do SNA contra Şehba, além do cerco de Sheikh Maqsood, é evidente que o regime Assad está numa situação muito difícil; é possível que ele venha a colapsar. Entretanto, qualquer potencial domínio do HTS não será estável e não será capaz de resolver os problemas urgentes que a ditadura de Bashar al-Assad criou e agravou na Síria. De todo modo, a queda de Assad pode abir uma janela de oportunidade para mudanças na região, se sírios – tanto os que permanecem no país, quanto os que vão decidir voltar após o exílio – sejam capazes de reviver as ideias que deram origem à revolução síria.
Potenciais globais como a Turquia, os Estados Unidos, e Israel vão se beneficiar da ofensiva do HTS. O HTS responde às necessidades deles, como uma força que se opõe ao Irã, a Assad, e a Rússia. Se vencerem, e tiverem chance de investir na elaboração de um estado, aos moldes do Talibã, é possível que os principais atores na HTS exercitem sua influência num possível novo governo. É até possível que os estados supracitados possam apoiar o HTS a tomar o poder, uma vez que não estejam interessados na independência e auto-organização das pessoas sírias.
A queda do regime Assad seria boa para a DAANES de várias formas, mas também levanta grandes dúvidas:
A) Há o ério risco de que, livre da necessidade de lutar contra a Rússia e Assad, o Estado Islâmico use a oportunidade para crescer novamente, apesar de também estar em conflito com o HTS.
B) Nós podemos esperar que os Estados Unidos se tornem cada vez mais invasivos e manipulativos se a DAANES se tornar mais dependente dos Estados Unidos para se proteger de uma potencial invasão turca.
C) Encontrar um novo balanço de forças na região certamente será caótico e sangrento, e não é possível prever como isso acontecerá.
D) Isso é especialmente verdade com a Turquia expandindo sua zona de controle direto para o interior profundo da Síria.
E) Finalmente, os fundamentalistas religiosos do HTS tomando o oeste da Síria, vão provocar um drástico conflito com o projeto revolucionário no noroeste da Síria, especialmente em relação a como este processo mudou o status das mulheres na sociedade.
A situação no Líbano será bastante difícil, com o país se encontrando sitiado entre Israel e o território sírio controlado pelo HTS. Isso pode levar a uma escalada de conflitos internos. O Hezbollah perderá a rota da qual recebe apoio do Irã.
No contexto da região, a DAANES representa uma solução não estatal baseada em autogoverno e autonomia de gênero, religiosa, e étnica. Ainda assim, é a saída que menos recebe apoio internacional.
Saudações revolucionárias!
